Dica n.º 13 - Sexta, 20.10.2000
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Videoconferência Brasil-Portugal Língua Portuguesa
Globalização, estrangeirismos: purismo ou acolhimento
(Domício Proença Filho: conferência do dia 06/06/2000)


TARCÍSIO PADILHA – Inicialmente, quero convidar o acadêmico Carlos Nejar, secretário-geral da Academia Brasileira de Letras e coordenador do curso, para ter assento à mesa. Tenho o prazer de convidar o conferencista, professor Domício Proença, a tomar assento à mesa.

Senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores. Este novo Ciclo que hoje se inicia se insere no bojo de uma programação atinente aos 500 Anos do Descobrimento ou Achamento do país, e por outro lado é também um desdobramento da videoconferência que se realizou no mês de maio, num diálogo entre a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras. A primeira conferência, Globalização, estrangeirismos: purismo ou acolhimento está a cargo do professor Domício Proença que será apresentado pelo coordenador deste Ciclo e secretário-geral da Academia, o acadêmico Carlos Nejar.

CARLOS NEJAR Senhor presidente, eminentes acadêmicos, prezado público presente. Domício Proença Filho, que hoje fará a conferência, iniciando este Ciclo a respeito da língua portuguesa, já é conhecido de muitos de nós. É professor, doutor e livre-docente em Literatura Brasileira, professor titular da disciplina na Universidade Federal Fluminense, crítico literário, poeta, ficcionista, autor de várias obras, entre elas, Estilos de Época na Literatura, que já vai a tantas e tantas edições, A linguagem literária pós-modernismo e literatura. Como poeta, é autor de Oratório dos Inconfidentes; como ficcionista, lançou o romance Capitu, Memórias Póstumas.

Entre as edições que organizou, encontram-se os Melhores contos de Machado de Assis, já em 12ª edição, e o recente Aventuras, crônicas de Rubem Braga ¾ que saiu pela Record e que, em vinte e seis dias, esgotou a 1ª edição, já está na segunda, e a informação é que já vai para a 3ª ¾ sobre Rubem Braga, este grande cronista natural do Espírito Santo, onde morei, mas que mora no coração de todos os leitores brasileiros.

Queria dizer também da minha satisfação pessoal e a satisfação desta Academia por poder apresentar Domício Proença Filho, pelo seu talento, pelo seu valor, e também pelo amor que tem à palavra, à nossa língua comum. Ele nos dirá coisas nesta tarde que, tenho certeza, precisamos ouvir. Muito obrigado.

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Muito obrigado, Carlos Nejar. Em primeiro lugar, um agradecimento muito especial pela generosidade de suas palavras, pelo carinho. Você sabe que essa admiração é mútua, uma vez que estou aqui diante de um dos grandes poetas da contemporaneidade brasileira, senão, diante de um dos grandes poetas da língua portuguesa, o gaúcho Carlos Nejar.

Senhor presidente, gratíssimo. Senhor presidente, e prefiro dizer meu mestre de Filosofia nos antigos bancos do Colégio Pedro II internato, muito obrigado pelo privilégio do convite, embora a responsabilidade atemorize um pouco, sobretudo depois da apresentação de Carlos Nejar. Muito obrigado, acadêmico Carlos Nejar, por suas palavras e por permitir que eu também estivesse aqui, num momento importante como é a abertura de um Ciclo deste porte, mais do que nunca oportuno e necessário para que se fale e se debata a questão fulcral da língua portuguesa, coitada, tão sofrida, tão abatida, tão abandonada nos dias que correm, época de confusão geral. Como diria Machado: "não há confusão mais geral que a do enterro de Brás Cubas".

Muito obrigado, senhores acadêmicos, pela distinção da presença com que me honram; obrigadíssimo, Zora Seljan, mais uma vez, pela belíssima reportagem com que você me brindou, e sobretudo, por sua presença aqui, agora. Muito obrigado às senhoras dos ilustres acadêmicos aqui presentes também; muito obrigado, Geraldo França de Lima, Murilo Melo Filho, Lêdo Ivo, Ivan Junqueira.

"Problema de língua, conflito de paixões", aprendi com mestre Celso Cunha. As paixões são causa de desgraça, e se não estivesse aqui na presença do professor Padilha, me arriscaria a dizer uma das poucas frases que restaram das aulas de grego, em que aprendi este pensamento: A epitemia ai zince rou a tia. Daí não passo, não vou além. Ah, sim, há uma segunda frase que ficou do curso de grego do Colégio Pedro II, e que mais do que nunca, se faz presente aqui: Aleti nos filosti e zauros es tin (um verdadeiro amigo é um tesouro), que virou lugar comum e esta Casa é uma casa de amigos.

Então, com o risco de intensificar, por força da matéria a ser tratada, algum espaço conflitante, espero não confirmar a radicalidade do pensamento grego. E para tanto, vou me valer de uma medida cautelatória. Solicito escusas antecipadas, se em alguma instância do curso desta fala, incorrer na sensacionalização do óbvio ou no excesso de algum radicalismo ideológico.

"Problema de língua, conflito de paixões". Começo pelo último termo do título: os estrangeirismos.

Estrangeirismos sempre estiveram presentes, com maior ou menor volume, na língua portuguesa, como elementos enriquecedores, emergentes do convívio Cultural dos povos. Palavras e expressões imigrantes decorrem dos rumos do progresso, em sua maioria, situam-se nos espaços da ciência, da tecnologia, da diplomacia, e se fazem indispensáveis. Tempo houve em que era freqüente a referência à carreira diplomática como a carrière, e parece que a carrière, apesar da invasão inglesa nos domínios da diplomacia, continua a ser uma referência de elegância.

Emergem também os estrangeirismos das contribuições episódicas da moda, e mais recentemente, da publicidade, seja como designação de objeto concreto, de técnica, de modos de pensar, de fazer e de sentir. Muitas delas passam a integrar o vernáculo, ou seja, a língua transmitida, a língua que se aprende em casa, desde os primeiros anos de vida. Língua falada, língua viva. Outros simplesmente passam: não vão além da efemeridade do modismo.

E os acréscimos freqüentam a sintaxe e, com maior presença, a parte aberta do idioma, vale dizer, o vocabulário. Marcante na língua escrita, notadamente na linguagem literária, a presença francesa, a partir do século XVIII ou desde o século XVIII. Exemplos sintáticos franceses, de que o falante usual, em geral, nem se dá conta: o uso da preposição em instruções a que elas se incorporaram, como por exemplo, "ensaio sobre a língua portuguesa" - é uma construção que vem do francês, e Lêdo Ivo está aqui para não me deixar mentir - "fogão a gás", "entusiasmo por Machado de Assis". Quem se lembra que essas construções vieram da sintaxe francesa?

Os exemplos vocabulares são numerosíssimos, aportuguesados ou não. Os "detalhes tão pequenos de nós dois" também vêm do francês, ninguém vai dizer "minúcias tão pequenas de nós dois", de forma nenhuma, que foi a proposta do tempo em que os detalhes eram ainda galicismos. (Está chegando, para honra minha, o meu presidente do PEN Clube, Marcos Almir Madeira, e chega oportunamente, porque é o último baluarte da elegância do galicismo na língua portuguesa, é o nosso causeur por excelência).

Mas em homenagem ao nosso causeur, estou lembrando aqui alguns dos milhares de galicismos incorporados já, e porque incorporados, transformados em empréstimos, pois a lingüística estabelece uma diferença: o estrangeirismo que continua com a sua forma na língua é estrangeirismo mesmo. Aquele que se veste de verde-e-amarelo passa a ser empréstimo e se incorpora à língua. Então, há uma distinção técnica entre o estrangeirismo e o empréstimo. Entre os empréstimos incorporados, além dos que citei, "ateliê, "bufê", que deve ser dito "bufê" e não "bifê", pois o "bifê" já é francês. "Bufê", com acento circunflexo. "Chofer", olha a traição fonológica: "chofeur", não, "chofer", tem que abrir. "Croquete", "buate", "filé", porém o "mignon" não teve jeito, ficou com g n mesmo, "à la carte", e essa confusão nos deixa todos meio détraqués.

Exemplos ingleses na sintaxe. (Vou interromper de novo, quem está chegando é o embaixador Afonso Arinos, por favor). Há pouco, falava da carrière, aí está - ainda bem que ele chegou depois, porque podia me corrigir - um dos nossos embaixadores, dos que fazem a carrière e honram a carrière no Brasil, Afonso Arinos, acadêmico desta Casa. Então, exemplos ingleses agora. Na sintaxe, pouca gente sabe ou se lembra que a antecipação de um adjetivo a um substantivo é influência inglesa, sobretudo na nomenclatura de "Hotel". É muito comum dizer "Majestoso Hotel", isso é inglês, mas, se não quiserem este exemplo, há um outro, o substantivo com valor de adjetivo, num mesmo hotel, aquele "Rio Hotel", "Copacabana Hotel". Isso é um anglicismo sintático, ou seja, os anglicismos vocabulares são tão numerosos, que não preciso lembrá-los neste momento.

O maior ou menor volume da presença estrangeira na língua vernácula vincula-se, portanto, à maior ou menor influência que a Cultura de um país possa exercer sobre a Cultura de outro. No caso do português, é importante que se diga, os empréstimos, de qualquer ordem, nunca chegaram a ameaçar-lhe, de fato, a integridade sistêmica. Isso é que me parece importante: A língua como um sistema, ou seja, um conjunto organizado. Se é um conjunto organizado, se faz de princípios organizatórios. Nesse território, palavra estrangeira nenhuma entrou, já veremos por quê.

Mas momentos houve, por exemplo, na história do português lusitano e do português brasileiro, essas duas variantes nacionais da mesma língua comum, em que a utilização de termos e expressões francesas era traço de elegância e de finesse; afinal, a Cultura francesa se impunha como modelar nesses espaços. Freqüentava assiduamente reuniões, alguns textos literários e a maioria dos documentos diplomáticos - não é verdade, Afonso?

O vezo era tão grave no final do século passado, que chegou a merecer a palavra equilibradora de Machado de Assis. O criador do Conselheiro Aires assinala a divergência de opiniões, declara-se favorável à abertura do idioma e à influência da língua francesa, desde que não destruam "as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma". Está lá em A língua, um texto antológico do Machado, como antológico é um instinto de nacionalidade, em que ele faz essa ressalva.

A presença inglesa, que já se fazia sentir ao seu tempo, mobilizou o comentário ameno de Eça de Queiroz, cujo centenário se comemora este ano ¾ e aí está o Geraldo França de Lima, que vai corroborar o que estou dizendo ¾ Eça de Queiroz que no fundo, era notabilíssimo criador de dimensões novas incorporadas ao idioma. (Vou parar em homenagem ao acadêmico Antonio Olinto, faço questão de registrar a sua entrada aqui, diretor desta Casa, como todos sabemos).

Então, Eça de Queiroz, um notável criador de formas novas que enriqueceram a língua portuguesa, não se furtava ao uso dos estrangeirismos, de tal forma, que mereceu críticas terríveis por isso, e se defendia galhardamente, e se defendia da mesma forma que Machado, à luz do gênio da língua e do equilíbrio. Cito um trecho curiosíssimo de um seu pronunciamento a respeito de um verbo, que começava a querer entrar na língua portuguesa, naquela época. Diz assim: "Este vocábulo interviuar é horrendo - interviuar é até difícil de dizer - tem uma fisionomia tão grosseira e tão intrusivamente yankee, como o deselegante abuso que exprime. O verbo entrevistar, forjado com o nosso substantivo entrevista, seria mais tolerável e de um som mais suave e polido".

Mas ele também não gosta do entrevistar. Na seqüência do artigo, ele diz que entrevistar em Portugal tem outro sentido, que também não é uma palavra muito bonita, e ele então pede aos brasileiros, com o seu poder de criatividade, que inventem uma palavra nova. Os caprichos idiomáticos do futuro, felizmente, agasalharam a "entrevista", que também não era de seu agrado, como eu disse, e muita gente se recorda hoje daquele anglicismo teratológico, o interviuar.

O que se critica, desde essa época, é a presença excessiva e redundante de termos estrangeiros. Isto é que efetivamente provocava e provoca preocupações e tentativas de correção de rumos. Nascidas de quem? Obviamente, de especialistas e de escritores, sobretudo em tempos de afirmação de nacionalidade e de sedimentação do idioma, sobretudo num tempo em que o nacionalismo ainda era uma virtude. E alguns desses senhores eram puristas tão ciosos, que chegavam a propor ações singulares para substituir o termo estrangeiro como "anidropodoteca", de saudosa memória ¾ "anidro", sem água; "anidropodo", sem água nos pés, "anidropodoteca" ¾ e chegaram a propor, para substituir a francesa galocha, o ludopédio, ou balípodo. Houve quem propusesse ludopédio, mas outros puristas disseram: não, ludopédio, ludos, isso é coisa latina; ludos, jogo; pés, pede; não, ludopédio não, é melhor não. É melhor usar balípodo, é mais grego, mais castiço.

Quando o foot ball, o elitista futebol, o futebol começou elitista, quem conhece a história do futebol sabe quem eram os jogadores do Fluminense, não é à toa que ficamos pó-de-arroz. A galocha perdeu presença, por absoluta superação tecnológica. O futebol vestiu-se de verde-e-amarelo e passou a integrar a Cultura, a mitologia e o imaginário do brasileiro. E ainda comandou a naturalização das palavras designadoras de outros esportes da bola: voleibol, basquetebol ou cestobol, e até um curiosíssimo hand ball, um hibridismo que está aí se impondo.

Curiosamente, o goal-keeper virou goleiro. Nos bons tempos em que ainda praticava esse fabuloso esporte bretão, o guarda-valas de Portugal ainda era goal-keeper, que virou goleiro; o back virou zagueiro; o insider fez-se meia-esquerda e meia-direita, e mais recentemente, médio-volante; e os técnicos atuais estão mudando tudo isso.

Caprichos da integração entre a comunidade e a língua de que ela se vale: a contribuição individual, venha de onde vier, venha do especialista, venha do escritor, e o escritor é criador de línguas, sim. Eça de Queiroz não me deixa mentir, Machado não me deixa mentir, e os escritores, vários aqui presentes sabem disso, lançam no mercado verbal um termo novo, e de repente, ele se coletiviza. Mas, para ele se coletivizar, precisa atender ao que se chama tecnicamente a deriva do idioma, ou se preferirem, o anglicismo drift, ou seja a soma de tendências que fazem a língua ser como ela é, aquelas tendências que figuram e caracterizam a estrutura do idioma.

Qual é a parte da língua mais sensível ao estrangeirismo? É o léxico, é o vocabulário, porque ele é, inclusive, extremamente insensível às variações Culturais. Um exemplo recentíssimo citado por Rita Marquilhas, consta do Atlas da língua portuguesa na história do mundo, lançado no ano passado, e se refere à palavra "sutiã", no seu modelo sustentador tradicional, que mantém em Portugal a forma francesa, soutien. Mas os derivados, nascidos das oscilações da moda e dos avanços do mercado internacional, passaram a designar agora aquela peça por body ou top.

No Brasil, o top designa uma peça similar, só que - as senhoras, por favor, e as jovens elegantes me corrijam se estiver errado, a informação é doméstica - é uma cobertura que vem do abdome, da parte superior do abdome, até as protuberâncias naturais a que se destina cobrir, não é verdade? Então, isso é o nosso top. Mas, se o top designa essa peça similar que se sobrepõe, o top também no Brasil freqüenta a ausência; aparece no topless e o topless está aí para ninguém botar defeito.

O hibridismo, rigorosamente de acordo com a deriva do idioma, é imediato na ânsia de apelo das vendedoras portuguesas em Lisboa. É comum encontrá-las a oferecer às freguesas este "bodezinho" ou este "topezinho". Isso é complicador, isso não agradaria a Eça de Queiroz, com toda a abertura do juízo dele. Corante de bochechas, além-mar e aquém-mar, era, nas gerações da terceira idade, conhecido como carmim. As mulheres passavam carmim nas faces ou nas maçãs do rosto, ao que tudo indica francês aportuguesado, porque a origem é sânscrita através do latim, e o francês se apropriou, e possivelmente via França, chegou ao Brasil carminando várias bochechas por aí.

Nas atuais senhoras de meia-idade o carmim foi substituído pelo rouge, e o rouge, na juventude de algum tempo, converteu-se em blush. A língua acompanha a história da sociedade de que ela é o veículo de comunicação primeiro. Vamos admitir, sem mergulhar na complexidade da questão, e essa expressão estou aqui insistindo nela, na sua complexidade. Quem estiver interessado na complexidade da questão, pode ler um ensaio excepcional, lido nesta Casa, que se chama Língua e Filosofia, assinado por esse pensador da Cultura que se chama Sérgio Paulo Rouanet. Está à disposição de quem quiser, no também em boa hora inaugurado ¾ Centro de Memória desta Casa. É um texto primoroso, que aprofunda em termos, porque filosófico, porque discute filosofia da linguagem, aprofunda essas relações interlinguageiras que marcam o mundo atual.

Sem mergulhar na complexidade da questão, diria que a língua acompanha as mudanças da sociedade e da Cultura em que se insere, e onde se desenvolve. É exatamente em função do estágio de desenvolvimento da Cultura ocidental na nossa contemporaneidade, que emergem fundas preocupações, hoje, aqui, agora. Por isso, dizia que a confusão "era mais geral do que no enterro de Brás Cubas". É uma preocupação que envolve as línguas de Cultura modernas. As línguas de cultura modernas totalizam talvez quarenta idiomas, hoje. Na verdade, até 1987, havia no mundo, registradas, seis mil duzentas e cinqüenta e oito línguas, com uma morte gradual, por semana, de duas línguas. A cada semana, desapareciam duas línguas. Quando se diz língua, principalmente as línguas que desaparecem, são as línguas ágrafas, as línguas que não se escrevem, e porque não se escrevem, têm muito pouca condição de permanência.

Então, essas línguas, hoje, devem estar em torno de seis mil. Dessas seis mil, de Cultura, línguas capazes de traduzir pensamento universal, língua adquirida nas escolas: quarenta. E dessas quarenta, possivelmente, umas quatorze com alguma presença, e vão se reduzindo, sete talvez de ponta. Não gosto de estatística, mas deve ser por aí - não é, Afonso? Mais ou menos. Então, a língua portuguesa, felizmente, é uma língua de Cultura, e é exatamente por ser uma língua de Cultura moderna, que provoca essas preocupações.

Ao fundo da preocupação, o desenho contemporâneo da Cultura mundial decorrente da crise da modernidade, que vem desde o momento em que ela começa lá no século XVIII, no final do século XVIII, anunciando o retorno ao paraíso através da razão e da ciência, através das luzes da razão e da ciência, por isso mesmo através do Iluminismo - o meu mestre aqui, se estiver errado, me corrija -, mas essa modernidade, que começa ali, começa a entrar em crise e essa crise se intensifica nos últimos vinte e cinco anos, marcados pelo extraordinário e acelerado progresso da ciência e da técnica. Nos últimos cinqüenta anos, cinqüenta mil novos termos técnicos e científicos entraram no mercado lingüístico do mundo. Agora, essa ciência e essa técnica são dimensionadoras de um sistema integrador de espaços intercomunicantes, caracterizados pela unicidade espacial e temporal: a unidade do espaço e do tempo que cada vez se comprime mais.

Esses espaços se chamam eletrônica, informática, cibernética. No comando, o computador. Na condução da trama integradora, com notável e avassalador destaque, a informação, sobretudo veiculada na língua inglesa, que assume destaque dominante por força da Cultura hegemônica do novo império do nosso tempo: a Cultura dos Estados Unidos da América do Norte.

Inegavelmente a Cultura hegemônica do nosso tempo, polícia do mundo, a grande Roma - Scarlet Moon de Chevalier acaba de chegar, muito obrigado pela presença - a tal ponto, que é a segunda língua de quase todos os países em que não é vernácula. É uma exigência do progresso do mundo atual. Como ser contra isso? Mas a informação, de fato, vem exercendo notável influência sobre a visão de mundo dos indivíduos, isso já faz algum tempo, em função do processo de modernização e do percurso do desenvolvimento econômico.

O comportamento humano, no bojo da sociedade de consumo, tornou-se hétero-dirigido (dirigido de fora), a partir de estratégias e táticas extremamente sutis. Na decorrência, a automação, a estetização dos produtos patrocinados pela mídia. Desenvolve-se uma indústria do signo. Valoriza-se o simulacro, que apaga a distinção entre o real e o imaginário. Algumas anedotas são ilustrativas. Conta-se que uma senhora estava num Shopping Center com a sua filha, uma menina (deve ter sido no Paraná) loiríssima, de olhos azuis, e alguém que passou disse: - Mas que beleza, a sua filha é tão linda! Que menina bonita, meu Deus!- A senhora está dizendo isso, porque não viu a fotografia dela a cores.

Uma outra anedota, sintoma da crise, é a do japonês (e olhem os japoneses, sempre os japoneses) que está diante do espetáculo deslumbrante da aurora boreal, maravilhoso, coloridíssimo, e ele filmando, filmando, diz assim: - Ai, não vejo a hora de passar isso no vídeo lá de casa -. A realidade não tinha sentido, o que tinha sentido era o simulacro. E é de simulacro que vivemos, é ver a publicidade, é ver as campanhas eleitorais orientadas pelos especialistas em marketing, não tem outra palavra, a palavra se impõe. Como substituir, em mercado? Não é o caso, ou seja, anestesia-se a sensibilidade das pessoas, condicionam-se comportamentos. Esse é um grave problema do tempo, hoje: expande-se a dimensão utilitarista do processo de modernização; amplia-se, paralelamente, o processo de desumanização; e caminha-se para a solidão narcísica da navegação na Internet, quando o contato físico-humano começa a perder dimensões avassaladoras. Mas isso parece que deve ser moda, o homem é, sobretudo, feito de carne, de sentidos. Acho muito difícil que isso permaneça, mas aqui estou fazendo apenas exercício de futurologia barata.

Pouco a pouco, avoluma-se a crise da modernidade. Para alguns, ela se intensifica a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Para outros, ela acontece, a grande crise, num momento qualquer, entre 1960 e 1980. Ela é muito mais visível nos chamados países desenvolvidos; num país como o nosso, com uma singularidade plural como somos, é muito difícil detectar o que é moderno e o que não é moderno, porque aqui convivem todas as condições sócio-culturais, a da modernidade, ou até da pós-modernidade, convivem com a realidade feudal de certas paisagens nossas no Nordeste, não é verdade?

A agudização da crise desestruturadora da modernidade vem na década de 90, quando a internacionalização da economia capitalista ganha dimensões totalizantes. Instaura-se o capitalismo transnacional globalizador, e aí estamos nós, na década de 90, na plenitude da chamada globalização, consolidadora da planetarização do capitalismo. Recomendo um texto também do Sérgio Paulo Rouanet a propósito disso, muito bom, que é um livro chamado As razões do Iluminismo, onde esse processo que acompanha a evolução do Capitalismo está muito bem apresentado, num ensaio chamado As ilusões da modernidade, se não me engano. Vivemos, nos últimos vinte e cinco anos, um novo período na seqüência sócio-histórica com que o raciocínio humano discursivo procura entender e explicar os caminhos da humana condição. Quero dizer que o raciocínio humano exige dividir para compreender, e divide a História, divide a vida, divide o mundo, em períodos. Vivemos um período, em suas marcas, e aqui, evidentemente, não vou usar, porque não é minha área. Valho-me aqui da caracterização do geógrafo Milton Santos, e com outras palavras, tentarei dizer como se pode entender esta globalização.

A marca fundamental é a ação humana mundializada, que justifica até a sua própria designação. O contínuo conflito das variáveis construtoras do sistema em que se configura. Explico. Cada sistema é um período de variáveis, e até os últimos vinte e cinco anos, essas variáveis, mais ou menos, se integravam harmonicamente. Nos últimos vinte e cinco anos, essas variáveis que integram o sistema estão em conflito, estão de tal forma conflitadas, que mesmo os senhores da globalização já não têm domínio sobre ela ¾ dizem os especialistas.

O endeusamento da ciência e da tecnologia é outro traço do nosso momento. A materialização da existência, medida, sobretudo, por índices estatísticos ou outro elemento, e óbvio, alguma coisa positiva, o surgimento de novas ocupações, novas formas de viver, mas também, novas atitudes, novos valores, nova ética. Vivemos sob o império da competitividade e vivemos sob a dominância de Narciso. Nunca a humanidade foi tão narcisa, nunca a humanidade procurou tanto na lagoa o seu reflexo, ou procurou no seu próprio olho o reflexo da lagoa, que é para ser muito mais narciso ainda, dentro de si mesmo, o reflexo da realidade.

No horizonte, banalmente sinistra, a sombra do pensamento único. O buscado retorno ao paraíso, meta antiga, de lá do século XVIII, está longe de ser realidade. Na dinâmica do processo e por força da permanência do estado crítico que peculiariza esse período, há quem admita a possibilidade de rupturas e mudanças. Na base do processo globalizante, o interesse do mercado, associado visceralmente ao poder da informação. A informação condicionadora, despótica, imuladora, na direção do discurso unificador. No jogo do mercado, o dinheiro, até com a emergência de uma nova moeda unificante, o eurodólar. Na essência do jogo do capital, um dinheiro marcado de fluidez, praticamente abstrato.

No âmbito da informação, a presença unificadora do idioma geral: o inglês. É aí que reside o perigo. E um novo espaço, para além da televisão: a Internet. Novas conquistas, não que isso não nos traga prazeres, condições melhores de vida, nos ajude nas viagens, no convívio, no todo dia, mas a essência maior, a configuração maior é assustadora. Novas conquistas, dizia eu, novos fatos, novos nomes, lançados e divulgados em língua inglesa; 90% da literatura técnica e científica do mundo hodierno, escrita ou traduzida no idioma inglês, comprovam a sua relevância. Isso não é desprezível.

Nesse âmbito não vou além, para o sapateiro não ir além do sapato, para não ultrapassar o limite do sapato. Tenho muito cuidado com isso, até porque globalização é um assunto que divide, radicalmente, opiniões: otimistas e pessimistas. E também divide adjetivos como fabulosa, mas não porque seja excepcional, (fabulosa no sentido denotativo de presa a fábula, simulacro, falsa); perversa, utópica, reversível, irreversível, são esses adjetivos, mas já estou indo longe demais, e até se ele estivesse aqui, ia pedir perdão a ele, ao professor Celso Furtado, economista brasileiro do século. Se o Rouanet estivesse aqui e o professor Cândido Mendes também, não ousaria nem chegar a esse ponto, porque eles são iluminadores destes percursos.

Então, vou voltar às águas em que a navegação é menos tormentosa, para dizer que o processo de globalização acelera o desenvolvimento da Cultura de massa, em que se insere a nova comunicação. Diante dele, duas fortes conseqüências: de um lado, a extensão planetária de uma determinada Cultura e o contato de Culturas distintas, numa acumulação de umas sobre as outras, uma espécie de sincretismo cultural. De outro, a emergência, até violenta, de conflitos resultantes do reacender de manifestações Culturais fortemente definidoras de etnias e comunidades, e por extensão, conflitos de nações. Daí aquele argumento anterior de que o período se marca pelo conflito das variáveis que o integram, e não pela harmonia dos elementos que o fazem. Nesses espaços, e quem assinala isto, com outras palavras, é a lucidez reflexiva de outro pensador de Cultura, professor Eduardo Portella, as identidades Culturais vivem instâncias de crise. Fica muito difícil, hoje, desenhar-se a identidade Cultural de qualquer Estado-Nação, de qualquer comunidade.

Cabe, a propósito então de Cultura, considerar, e é importante que se diga em sentido restrito, a Cultura "já feita", isto é, antropologicamente, ou se preferirem, sociologicamente falando, as formas de pensar, de sentir, de fazer, que o consenso comunitário referendou como tal para aquela comunidade, e como tal, representativa dessa comunidade. E é essa Cultura "já feita" que a escola dissemina em sentido restrito, a Cultura que se está fazendo a cada momento no cotidiano do homem, sobretudo na atualidade, até porque a atualidade marcada é por uma aceleração vertiginosa do processo e pela compressão de tempo e espaço, na direção da realidade virtual, uma nova visão de mundo, uma nova realidade em que todos estamos inseridos.

Essas observações conduzem, imediatamente, à importância da soberania e da nacionalidade, instâncias em que a língua ganha singular relevância. Volto a Milton Santos e abro aspas "Com a globalização, o que temos é um território nacional da economia internacional, isto é, o território continua existindo, as normas públicas que o regem são da alçada nacional, ainda que as forças mais ativas do seu dinamismo atual tenham origem externa. Todavia, é o Estado nacional, em última análise, que detém o monopólio das normas, sem as quais os poderosos fatores externos perdem eficácia". Isso nos garante. A soberania não perece, o Estado-Nação resiste, é uma entre ene visões abertas ao debate.

No caso da língua, há uma pergunta (eu quase usava o lugar-comum), há uma pergunta que não quer calar. A marcante presença da língua inglesa, trazida e ampliada pelo processo de globalização e pela popularização gradativa dos recursos da informática, ameaça a integridade da língua portuguesa? Representará um novo glotocídio, tal como sucedeu com a língua indígena, a partir do achamento do Brasil?

A resposta a esta pergunta, em termos pragmáticos e imediatos, apóia-se, no momento, em conjecturas: não existe nenhuma pesquisa conclusiva, nenhum estudo que mostre os níveis de tais influências, pelo menos na realidade brasileira. E tenho dúvidas de que haja algo similar em terras de Portugal. Mas, para raciocinar, vamos admitir que a ameaça exista em níveis efetivamente preocupantes, diante de determinados indícios, indícios esses que são perceptíveis através da comunicação de massa, dos meios de comunicação de massa.

Os quentes, os livros, e os frios, ou de acordo com o grau de uso, o teatro, o cinema, o rádio, a televisão, os discos, os cassetes, os videocassetes, os computadores, e como gostava de dizer Antônio Houaiss, os futurimídia, os que surgirem por aí, e ainda em atividades e espaços setorizados, como a propaganda, o comércio, a gíria de grupos de jovens, certas modalidades de música. Estamos assistindo, em termos de arte popular ou erudita, a um momento crucial, que é mais ou menos o que acontece, historicamente, com todo final de século. É aquela era da mediocridade, que temos, a partir de determinados valores a que nos acostumamos. Mas será que é mediocridade? Será que temos o direito de avaliar assim, ou é apenas diferença? Fica a pergunta.

Por que essas coisas são preocupantes? São preocupantes porque os meios de comunicação na sociedade de consumo, há muito tempo, atuam em favor da universalização das línguas imperiais, línguas que tendem a dominar sozinhas, ou como segunda língua, via primeira língua, espaços extra-imperiais. Ou a se superporem em espaços bilíngües, trilíngües, multilíngües, provisoriamente poliglóticos. Provisoriamente sim, uma vez que, se a globalização seguir os rumos que alguns acreditam que vai seguir, é dada por muitos como certa a universalização do pensamento único e a presença unificante do inglês. Não me incluo entre eles, mas há muita gente que defende essa tese.

O atual processo de anglicização revela-se, de fato, avassalador. O grave é que, nestes momentos de globalização, a presença do modelo alienígena se torna impositiva, porque mobilizada pela força da informação, mais do que nunca controlada e direcionadora. Cada passo, cada telefonema de cada um de nós, hoje, são absolutamente controlados por um sistema, cuja pronúncia não sei muito bem dizer, mas creio que é échelon. É um sistema montado de satélites e computadores, capaz de localizar. Se o presidente da Academia fizer qualquer pronunciamento, que precise ser conhecido de imediato no império, ele será localizado e rigorosamente enquadrado numa tela de televisão, em sua casa, com tudo que ele disse rigorosamente detectado. Isto é muito sério.

Mas, esquecendo esse aspecto nebuloso, a língua acompanha a marcha da sociedade que a criou e que dela se vale. Situo-me entre os que acreditam que não é a presença dos termos estrangeiros entre si, no caso de língua inglesa, que põe em risco a configuração do país como Estado-Nação, não. Esta ameaça, ela se vincula à maior ou menor inserção do país soberano na qualificação modernizadora ou pós-modernizadora do progresso. A língua é apenas um aspecto e não é o mais importante.

E aqui valho-me, ainda uma vez, e com outras palavras, da lição clarificadora de Antonio Houaiss: "A língua portuguesa insere-se entre as línguas de Cultura que contam com um suporte geográfico e demográfico ponderável, tal como acontece com o chinês, o espanhol, o russo, o árabe e o inglês, e não acontece, ou não acontece na mesma intensidade, com o alemão, o holandês, o sueco, o dinamarquês, o norueguês, o hebraico". É um bastião de defesa positivo esse traço, esse suporte; é um bastião de defesa positivo, em resistência à desfiguração, mas a que se opõe um elemento de impasse.

O elemento de impasse é o seguinte: ao longo do processo de modernização do Ocidente, o português situa-se, em medida grave, entre as línguas de suportes culturais precariamente apoiados, ou não apoiados, por uma política de culturalização crescente dos que falam, dos que lêem, dos que ouvem, dos que escrevem. Isso na extensão do mundo lusofônico, não é só no Brasil, não. Nesse aspecto, a língua portuguesa está um pouco acima do hindi e do indonésio. Aí é que se instala a vulnerabilidade. Mestre Houaiss já destacava esses fatos no início dos anos 80, e daqueles tempos até o presente, muito pouca coisa se fez na direção desta culturalização, de apoiar o desenvolvimento da Cultura nesse nível.

Expansão territorial e densidade demográfica não têm sido acompanhadas de expansão cultural. Na medida em que o universo da lusofonia se vê inserido no processo de globalização, sem a contrapartida da modernização cultural, ou do desenvolvimento paralelo da Cultura, a ameaça da glotofagia, gradualmente, ganhará espaços. Portugal é a exceção e a exemplo. A duras penas, há algum tempo, vem tentando participar do processo modernizador, até a ponto de, em sua condição de membro da Comunidade Européia, uma das bases da tríade sustentadora do processo globalizador, vir conseguindo dar uma certa feição à sua língua de cultura.

E um dos traços dessa maneira de dar feição, de dar um desenho específico à língua de Cultura, é a publicação de livros. Portugal estava, nos anos 80, com o índice de dois a três livros per capita, por ano. Curiosamente, países que começaram a ficar independentes, países de língua portuguesa ou em que a língua portuguesa disputa ainda com outros dialetos crioulos locais, mas que começaram a ter independência em 1975 e elegeram o português como língua de Cultura, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, não falo do Timor, que é recente, chegaram ao índice de um livro per capita, por ano. Li recentemente, em notícia da mídia, avassaladora, que, nos anos 90, o índice brasileiro baixou para 0,8% per capita, per anum.

Mas vamos nos concentrar no nosso país. Qual a realidade linguageira da nossa terra hoje, do Brasil? Somos oficialmente unilíngües, ninguém tem dúvida. O português é a nossa língua comum, usada pela maioria da população, consolidada como idioma oficial. É a nossa língua vernácula, ou seja, aquela que aprendemos desde o nascimento. E aqui já estou eu dizendo que não ia fazer, mas já estou sensacionalizando o óbvio até por oportuno, para acrescentar o seguinte. Na verdade, o português brasileiro convive com cerca de cem a cento e vinte línguas indígenas, em sua maioria ágrafas; para fins de comunicação, convive também com línguas trazidas pelos imigrantes, notadamente italiano, japonês, alemão e árabe, usados na comunicação familiar, com alguma imprensa e livros regularmente editados; quadro a que se acrescentam a forte influência do inglês, em geral, e a do espanhol, em determinadas regiões. Um país unilíngüe, numa realidade multilíngüe, com predomínio da língua portuguesa. Somos uma realidade singular e plural.

Em tal circunstância, há no Brasil/2000, falantes unilíngües: só falam o português - a maioria - ou falam a língua indígena; falantes bilíngües: falam o vernáculo próprio e a língua comum, o português. O número é pequeno. Falantes trilíngües: falam o vernáculo, que aprenderam em casa, alemão etc., a língua portuguesa e uma terceira língua. São raros. Falantes culturalizados poliglóticos (com perdão da má palavra), que se valem do português e falam, e não raro escrevem, três e mais idiomas; não são relevantes, em termos de fala comunitária, obviamente.

Por outro lado, cabe considerar, em função desses usos que fazemos da língua portuguesa, língua oficial, alguns aspectos fundamentais. Primeiro, considerar duas faces da língua: a língua transmitida e a língua adquirida. A língua transmitida se faz das várias modalidades que o idioma põe ao nosso dispor, as chamadas variações sócio-culturais, regiográficas, regionais e expressivas, que fazem com que a pronúncia e determinado vocabulário do Nordeste, do Sul, do Centro, sejam diferenciados, mas diversidade essa que não prejudica a nossa unidade.

No uso comum, na fala transmitida, se pode dizer que o importante é adequar a fala à situação de fala. Há um momento para cada palavra, há uma palavra para cada momento. Há um momento para a barriga, se nomeio os catarinenses de barriga-verde; há um momento para ventre, se dialogo com a divindade, e "bendito é o fruto do vosso ventre"; há um momento para abdome, se vou a médico, porque, se for a médico e disser que estou com dor-de-barriga, fica meio esquisito; há um momento para bucho, quando uma boa peixeira não vai furar abdome, vai perfurar o bucho; há momento para bucho, há momento até para estômago e suas variantes, estâmago e estômbago; e há um momento para papo, "não quero outra vida, pescando no rio de Jereré, tem peixe bom, tem siri patola de dar com o pé, quando no terreiro faz noite de luar, e vem a saudade me atormentar, eu me vingo dela, tocando viola de abdome pro ar". Nem morto. Eu me vingo dela, tocando viola de papo pro ar...

Então, há um momento para cada palavra, uma palavra para cada momento na língua falada. A língua escrita, não. A língua escrita exige, como em vários momentos do convívio social, a língua escrita exige a variante sócio-cultural culta. É da nossa tradição. Essa variante culta, que também é exigida em determinados momentos do nosso convívio. Só consigo um bom emprego, se dominar o culto; só consigo ascender socialmente, se dominar o uso culto. Só consigo escolaridade mais alta, se passar no crivo do vestibular ou do exame que fizerem, até do provão, desde que domine, não a língua, que essa eu falo e trouxe do berço, mas tenho que dominar a variante culta, variante que a sociedade referendou como representativa para esses casos. Então, tem que considerar essas duas coisas.

A língua oralizada é a mais vulnerável à influência alienígena, na medida em que as situações de fala abrem-se para as múltiplas variantes sócio-culturais, que integram essa diversidade a que me referi. E por força ainda da sua permeabilidade aos modismos incentivados pelo comércio, pelo cinema, pela mídia, pela música, pela publicidade, pelo mercado, principalmente pela música popular. Além de degustar o fascínio da expressividade do novo e dos modelos de uma Cultura bem-sucedida e aparentemente garantidora de sucesso: como vencer na vida sem saber inglês? Os nomes das lojas, os shopping centers, os fast foods, as deliveries, povoam os outdoors da nossa cidade. Se mudar isso, perde o charme - para usar uma palavra cara a Marcos Almir Madeira.

Como resistir ao e-mail, o e-mail com essa pronúncia quanto mais sofisticada, mais interessante. - Vocês não querem meu e-mail? Já lhe dei o meu e-mail? Isso funciona. E como não preparar as mailing-lists para o casamento da filha? Contratei uma promoter para fazer a mailing-list, sem o quê o casamento não sai. E o efeito maravilhoso de dizer last but not least, ao fim de uma argumentação? É a glória. Encantos do fascínio do império, compensações da dependência cultural e por que não dizer, econômica? A gente inveja.

A língua escrita, não. A língua escrita é mais conservadora e tradicionalmente apoiada no registro culto, como disse, a não ser quando escrita para ser falada. É um outro detalhe curioso, a língua escrita para ser falada, porque a língua do rádio, a língua da televisão, a língua da mídia falada, a língua da TV e do rádio, é uma língua escrita antes para ser falada, e ela adota, sim, os estrangeirismos, mas em termos: a partir da sua efetiva incorporação ao léxico do idioma, até porque passível de autocontrole de quem escreve. O léxico implica uso diversificado por parte do usuário.

Vocês sabem qual o vocabulário médio do brasileiro menos culturalizado, vale dizer, o brasileiro pouco escolarizado? Ele usa um vocabulário que gira em torno de três mil palavras, apenas três mil palavras, cujas combinações podem chegar a trinta mil termos. A língua, essa língua portuguesa nossa que, em 1943, em um dos primeiros dicionários que foi organizado, totalizava quarenta mil vocábulos, hoje coloca, à disposição do falante, mais de quatrocentas mil palavras, e as possíveis combinações levam a sete milhões de possibilidades ou mais.

Esse universo abriga, obviamente, um número razoável de empréstimos, validamente incorporados. A utilização desses milhares de termos depende do domínio que o usuário tem da escrita e dos instrumentos lingüísticos fundamentais, dicionários, vocabulários, glossários. Ali está o registro, ali está a fonte, onde quem escreve, quem tem cuidado com a língua, quem quer falar bem e escrever bem – com perdão do bem aí - vai lá buscar nessa fonte.

Esse domínio configura um vocabulário ativo e um vocabulário passivo. O primeiro é sedimentado; o segundo, de marcada fluidez. É nesse espaço aberto do idioma, o léxico vocabulário, que o anglicismo atua com mais presença, e se impôs, ao longo do tempo, como empréstimo válido por força das conquistas científicas e tecnológicas da modernização. Ninguém, nem o mais rigoroso dos puristas, pode impedir, nem o deputado - estão tentando fazer uma lei para multar quem use anglicismo -, nem a legislação oficial, nem a legislação cartorial vai impedir o uso comunitário de palavras, ainda que possa até ser durante um tempo, durante a moda. Mas, oficialmente, se impedirá a comunidade de usar air bag, apartheid, bacon - não vai dizer bacon and eggs, vai dizer bacon e vai escrever bacon, que ainda não foi autorizada.

Beagle (a minha cachorrinha beagle vai ter outro nome?), beatnik, best-seller (quem não gostaria de ser best-seller, hem, Ivan Junqueira? Se vendesse todos os seus livros de poemas já pensou?). Blazer (blazer, essa coisa elegante), byte, bypass, catch, cassette, videocassette, check-up (fazer um check-up), chip, crawl, delivery, dopping, e-mail, factoring, fashion, feed-back, flash (aliás, o flash andou freqüentando umas reuniões aqui na Academia, recentemente. Ouvi alguém dizer, numa reunião da Academia: um rápido flash. Quer dizer, a palavra se impôs). Franchising, freezer, hacker, happening, heavy metal, hobby (não o cor-de-rosa, por favor), home-page, hover craft, input, jet ski (saudosa memória), jogging, kit, layout, lead, leasing, lift, lobby, marketing, off-line, on-line, mouse (que os portugueses estão traduzindo como rato: - Já moveste o rato? Não é verdade? Carlos Nejar conhece bem, está indo para o Porto, sabe disso). Open market, overdose, piercing (meu Deus do Céu!), overnight, teleprompter (não há âncora, hoje, que viva sem teleprompter), punk, funk, ranking, replay, rock, royalty, rush, scanner (ah, meu Pentium-3 não veio com scanner, é horrível), self-service, sex-appeal, shimmy (que enriquece todas as oficinas de carro), show (ah, mas tem espetáculo, mas vou assistir ao espetáculo da Maria Bethânia? Show é muito mais forte), skate, skinhead, slogan, songbook, talk show, trailer, underground, videoclip, videogame, western, yuppie, zoom. Western, num determinado momento, era tão poderoso, que um professor de Literatura, ao falar dos regionalistas - viu Lêdo Ivo?- escreveu assim: "A nossa literatura do Nordestern". Você vê até onde vai a influência inglesa.

E aí as aportuguesadas: bandeide, beisebol, bife, buldogue, caubói, copidesque, dólar, drible, estresse, futebol e por aí vai. Então, qual é a novidade preocupante? Já estou de olho aqui no relógio e quero ser inglês, porque a Academia, a Academia tem um zelo maravilhoso pelo cumprimento rigoroso dos horários. Só há duas realidades no Rio de Janeiro, que cumprem horário rigorosamente: as barcas da companhia que vai a Paquetá - porque não é só o João Ubaldo que tem ilha, eu também me permito freqüentar uma. (O João Ubaldo freqüenta a ilha de Itaparica, a minha é menorzinha, aqui do lado da baía). As barcas de Paquetá cumprem rigorosamente o horário e a Academia. As reuniões da Academia são rigorosamente dentro do horário, todos os ciclos aqui começam, pontualmente, às 17h30m.

Mas a novidade maior que preocupa, realmente, é a presença avassaladora por causa dos novos motores do desenvolvimento científico e tecnológico, que são a informática, a cibernética etc., e o ciberespaço. É uma preocupação que não se limita ao mundo da lusofonia. A França tem, inclusive, tomado medidas protetoras a respeito da incolumidade da língua nacional, mas a França tem um território pequeno. Aqueles dados que citei antes, da expansão territorial da densidade demográfica, não a defendem, e mesmo assim, a Tour Eiffel que está lá como símbolo da França, com grande resistência de uns e apoio de outros, está sendo conhecida atualmente como um gadget de Paris. Com todo o esforço que se faz para evitar, não adianta, o inglês chega e se impõe, até se impõe porque vocês sabem quantos vocábulos estão disponíveis na área de informática para nosso uso? Sete mil e seiscentos vocábulos dicionarizados, aliás, mais de sete mil e seiscentos vocábulos entre bytes e chips, software, hardware etc.

Agora, será que a gente vai se preocupar tanto com isso? Não. A meu ver, a opinião é pessoal, a preocupação centrada no problema corre um risco: deslocar o núcleo da questão. A questão da ameaça à soberania não está na língua; a ameaça à soberania envolve dimensões de caráter ético, político, econômico e administrativo.

Na palavra segura e respeitável de uma das maiores inteligências deste país ¾ espero estar sendo fiel ao seu pensamento ¾ num pronunciamento que fez na vídeo-conferência a que se referiu nosso presidente, ele disse o seguinte: "A questão opõe, como elementos polarizadores, defesa como Cultura e defesa como mercado". Palavras de Celso Furtado, que anotei naquela ocasião. Nessa direção é que cabe a resistência da identidade, na atualidade do mundo interdependente. É buscar o convívio, mas sem perda da sua identidade. É através das estratégias e táticas do mercado, que a atual transnacionalização provoca a excessiva presença das palavras universalizantes do inglês. Excessiva é, no caso, adjetivo nuclear.

No comércio, na publicidade, na propaganda, na música, na ilusão do simulacro, as contribuições da ciência e da tecnologia terminam por se fazer indispensáveis - e ninguém vai se fechar a elas, seria fechar-se ao mundo e ao progresso - quando não encontram contrapartida vernácula, ou quando, por um forte poder de sedução, mobilizam os usuários do idioma. E de certa forma, se fazem enriquecedoras, como demonstra o excepcional - faço justiça a esse trabalho, que não é de um semanticista, que não é de um filólogo, mas que eu li e representa uma excelente contribuição nessa direção. Um trabalho que, hoje, se transformou quase que em leitura obrigatória, para quem queira falar de estrangeirismos em qualquer língua: o primoroso e alentado Palavras sem fronteiras, dezesseis mil exemplos de palavras e expressões legitimamente aproximadoras de cultura, livro publicado pelo embaixador Sergio Corrêa da Costa, acadêmico desta Casa, e que, de certa forma, nos faz lembrar as lições de Machado e de Eça de Queiroz: o equilíbrio, a preservação do gênio da língua.

Claro está que a preservação da unidade na diversidade, que caracteriza o português, como caracteriza outras línguas, não é privilégio nosso, se deve a certos fatores que têm permitido o seu enriquecimento, sem prejuízo de sua integridade como sistema, e como meio de comunicação identificador.

Por um lado, graças a Deus e à nossa História como povo, permanece ativo o instinto de nacionalidade, apontado ainda por Machado de Assis, fundador desta Casa. É um traço que a globalização ainda não conseguiu descaracterizar, e dificilmente o conseguirá, principalmente, enquanto cultivarmos, como cultivamos, nossas metodologias, e sobretudo, enquanto permanecer ativa a literatura brasileira. É a ela que se deve a corporificação e a manutenção do complexo mitológico brasileiro, isto é muito importante, e por isso, ela deve permanecer prestigiada. Insisto nessa frase, porque parece que há no ar um boato de desprestígio, ainda não se tem nenhum elemento para dizer isso com segurança, e com a garantia - aí é que mora o problema - do seu lugar na escola, na rede, na grade curricular. Um povo sem literatura é um povo vulnerável à descaracterização Cultural. Língua e literatura interagem no processo lingüístico comunitário. Desde os poemas e o teatro de Anchieta, desde o texto fundador da Carta de Caminha, para usar aqui a feliz expressão do professor Cândido Mendes de Almeida.

Por outro lado, dificilmente a influência do inglês atingirá o sistema língua enquanto tal. Sequer a norma corre o risco de ser atingida. As dimensões fono-morfo-sintático-semânticas, que singularizam, por sistêmicas, a língua portuguesa, não se abrem a inserções alienígenas. São episódicas. Por exemplo, um caso episódico famoso é o caso de gol. Qual o plural de gol? O plural de gol com acréscimo do s seria a norma, mas, em português, não se acrescenta s à consoante. Gols fere o sistema, contraria os princípios de pluralização. Gois e goles foram propostos, mas não perduraram. Dois gois, dois goles. Há uma proposta substitutiva: tentos. Ganhou por dois tentos. Também não vigorou. Sabe qual é a solução? A língua escrita prefere registrar o resultado do jogo: Flamengo 2 x 0, acabou.

O que pode ocorrer num futuro não muito próximo, por força das exigências do efetivo e anunciado convívio universal, não podemos fugir dele, é o retorno similar a uma situação que o Brasil viveu nos seus primórdios: a convivência do português vernáculo, português usado em casa, na comunicação oficial, e do inglês como "língua geral", usada no comércio, na linguagem dos computadores, na informática em geral. Língua de mercado mundial, tal como aconteceu com o tupi, gramaticalizado pelos jesuítas. Só que essa nova língua já chega pronta e como paralela à língua de Cultura. Em termos de bilíngüismo, sem essa configuração espacial, esse duplo convívio parece brincadeira, mas esse duplo convívio já está acontecendo, há algum tempo, na Holanda.

Por outro lado ainda, os brasileiros não nos guetificamos, não corremos o risco que corre o inglês nos domínios do próprio Império, com a língua oficial ameaçada pelo espanhol e pelo italiano. Lá em Nova York, é muito comum. E há várias construções, há várias expressões faladas em Nova York, que misturam o inglês com o espanhol, de uma maneira bastante preocupante. Na verdade, língua se vincula a processo cultural, cultura implica comunidade.

Eu assino embaixo a precisão e o realismo desse trecho, volto a ele para dar à minha fala uma certa segurança e erudição, cito mais uma vez Sergio Paulo Rouanet, agora ipsis litteris, já que estamos falando em empréstimos: "No ciberespaço e no mundo globalizado, a língua universal é o inglês. O capitalismo transnacional está realizando, à sua moda, o sonho universal de desfazer Babel. Mas isso não pode significar o fim do pluralismo lingüístico. Sem nenhum chauvinismo, é um fato objetivo que, só na língua materna, podemos exprimir plenamente o nosso pensamento e as nossas emoções. Isso é válido mesmo para pessoas bilíngües ou trilíngües, que têm, não uma, mas duas ou mais línguas maternas. Sua competência se limita a essas línguas, não se estendendo no mesmo grau às línguas aprendidas posteriormente".

Cumpre que continuemos a ser (estou terminando), nós os brasileiros, oswaldianamente antropofágicos. Há que deglutir o termo estrangeiro, quando necessário. Vestir de verde-amarelo as palavras e expressões que não encontram contrapartida ou que sejam exigência do progresso científico e tecnológico, ou manter a forma original daqueles que, indispensáveis, sejam rigorosamente intraduzíveis. Alguns termos e expressões certamente irão impor-se, independentemente de qualquer controle, ao capricho do idioma, e até vão conviver com suas contrapartidas vernáculas ou com as formas naturalizadas. Isso já acontece, por exemplo, com shampoo, que se escreve em inglês, e se escreve também com x, xampu, e as duas ainda convivem. Se existe similar para o termo ou construção estrangeira, ou se disputam sinônimos, uma boa prática é dar preferência ao produto brasileiro. Caso contrário, prefira-se a forma aportuguesada, se já estiver coletivizada ou consagrada, ou use-se a palavra no idioma original, entre aspas, ou em grifo, e se na escrita à mão, sublinhada. Essa é a prática da tradição.

Mas a assunção não é arbitrária, nem individual. Quem avaliza a coletivização e a naturalização, quem dá carteira modelo-19 para a palavra estrangeira, é um bom Dicionário e, por tradição e por legislação, o Dicionário da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras. São a necessária referência, a segurança contra o império do caos. A assunção comunitária, entretanto, é caprichosa e, à luz dos princípios estabelecidos, faz suas escolhas. Um exemplo entre muitos é abajur, que deixou de lado o quebra-luz; o outro é o já citado sutiã, que também jogou para escanteio o deselegante porta-seios.

Há um problema, hoje. Bom, e como é que fica um caso como deletar? Está em pauta: delete, deletar. Deletar é tecnologicamente exclusivo. Diria o seguinte: com deletar e outros termos da linguagem do computador vai acontecer uma coisa interessante. A língua abriga naturalmente (só para dar um exemplo) apagar e destruir - está certo -, mas esses verbos têm uma ampla abrangência semântica: apagam-se manchas, letras, sentimentos, amores, sofrências, um sem-número de vicissitudes da humana condição; destroem-se barreiras, edifícios, reputações. Deletar, não.

Deletar é tecnicamente exclusivo: eliminar da tela e do arquivo do computador. E mais, atende à deriva do idioma, a forma inglesa tem algo em comum com o português: a mesma origem latina, o verbo delere (deleo, deles, delevi, deletum, delere), que significa apagar, raspar, destruir. Delenda est Cartago, verberava Catão, na antiga Roma: Cartago deve ser destruída. Portanto, o verbo tem uma tradição comum, atende à deriva, tem uma significação específica, dificilmente ele deixará de ser abrigado, mas baipassar, nunca. Bypass gerando baipassar fere a deriva do idioma, essa não tem a menor condição de se incorporar.

O que não pode, nem deve ser destruído por descaso, ou por incúria, é a unidade da língua portuguesa, como língua de Cultura. Unidade na diversidade, diversidade na unidade. E quem são as agências? Não é a legislação oficial, não é uma lei que vai definir isso. O que é necessário fixar, isso tem que ser fixado pelas entidades que têm condição de fazê-lo, as agências culturais que podem fazer isto, que podem fazer isto o quê? Podem garantir a fixação de uma política do idioma. Se a escola e os veículos mediados podem contribuir para a preservação ¾ e a escola é a agência cultural por excelência nesse sentido ¾, ela precisa que outros organismos fixem uma política do idioma. Essa é a grande batalha da escola, no sentido de nos levar àquela culturalização desejada para eliminar os vinte milhões de analfabetos, absolutos ou funcionais, não vou discutir a estatística. O absoluto é aquele que não escreve, não lê, e o analfabeto funcional é aquele que apenas assina o nome.

A atuação na direção da preservação da língua portuguesa como língua de Cultura, e a sua inserção entre as línguas de ponta, por força dos falantes ecúmenos que fazem dela a sexta língua do mundo,exigem a atenção na língua falada, mas especialmente na língua escrita. E para que a comunidade como um todo se una para preservá-la, ela precisa trabalhar na direção, repito, desta fixação de uma política do idioma. Isso cabe à Academia Brasileira de Letras, de direito e de fato, em trabalho conjunto com a Academia das Ciências de Lisboa, a Academia Brasileira de Filologia, e outras entidades congêneres dos demais países que integram a comunidade lusófona. Ouvidos os Centros de Estudos de nível universitário, os especialistas, aí então se realizará o grande sonho de Antônio Houaiss e de Celso Cunha. Ambos tiveram assento nesta Casa, e durante todo o tempo, lutaram por este trabalho de fixar uma política que seria orientadora, não apenas da escola, mas também da escolha dos livros didáticos, das escolhas das premiações, dos provões da vida. Sem referência, a coisa volta à confusão de todos.

A Academia já vem fazendo uma parte de seu trabalho, com o relançamento do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, do Vocabulário Onomástico, e o grande passo que foi dado no momento histórico, inegavelmente um momento histórico, que foi a videoconferência a que se referiu nosso presidente, a qual inaugurou a comunicação, por cabo da Embratel, unindo dez acadêmicos portugueses e dez acadêmicos brasileiros por delegação, para apontar os primeiros dados, os primeiros passos na direção de um trabalho conjunto.

Digo os seus nomes ,por justiça histórica. Na terra de Camões, Américo da Costa Ramalho, Maria Helena da Rocha Pereira, Adriano Moreira, João Málaca Casteleiro, Aníbal Pinto de Castro, Fernando Cristóvão, Raul Miguel Rosado Fernandes, João Bigotte Chorão e José Pina Martins. No Salão Nobre desta Casa, os acadêmicos presidente Tarcísio Padilha, Arnaldo Niskier, Candido Mendes de Almeida, Celso Furtado, Eduardo Portella, Evandro Lins e Silva, João de Scantimburgo, Josué Montello, Miguel Reale e Nélida Piñon.

De um lado, naquele momento ampliava-se o horizonte da comunicação no Brasil, notável abertura para a língua portuguesa. Do outro, firmava-se na defesa da integridade do idioma, como língua de Cultura e da comunidade lusófona, uma posição definida, clara, e o que ganha ainda maior significação – minha última frase - à luz da consciência de que a identidade se faz no convívio da indiferença. Fico aprovado.

Obrigado a todos pela gentileza da atenção e pela paciência com que me ouviram. Talvez não tenha conseguido eliminar a paixão das minhas palavras. Mas fecho como comecei: "Problema de língua, conflito de paixões". Eu me abro para o conflito enriquecedor.

Muito obrigado.

TARCÍSIO PADILHA – Passaremos imediatamente aos debates. Aqueles que quiserem participar, é só se manifestar, levantar a mão, e o microfone irá com o funcionário.

PLATÉIA (Marco) – Boa-noite, meu nome é Marco, ouvi atentamente, mas, sobre o imperialismo sou contra, porque o brasileiro também é imperialista com um boliviano, um peruano, produtos econômicos. Já fui ao Peru, imperialista brasileño, fui na loja e tudo era tergal; na época em que fui, era tergal, nescafé e tudo. Então, o brasileiro não vê essa problemática, ele acha que só...

TARCÍSIO PADILHA A sua pergunta, por favor.

PLATÉIA (Continuação) – A minha pergunta é que tudo que você falou está num limite, num teto, você não passa, porque tem a língua internacional, que é o esperanto para todos os povos, da qual participo, a língua internacional com que escuto o rádio da China, da Europa Oriental, é essa a verdadeira globalização, o resto é blá, blá, blá.

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Você tem um comentário. Eu disse: a identidade se faz na diferença; eu disse: problema de língua, conflito de paixões. Há quem defenda, como você, o esperanto como a língua internacional, há quem diga que o esperanto não tem condição de ser língua internacional, porque é uma língua artificial, e a língua precisa do embasamento da História. Todas as palavras de uma língua nascem carregadas de História. A língua do esperanto se vale do latim, de outros idiomas, para tentar um veículo de comunicação comum.

Há quem combata, há quem defenda, outros acham que se deve voltar ao latim, que o latim seria, por excelência, a língua universal. Outros consideram que é um arcaísmo isso, voltar ao latim como? Mas se temos um sem-número de línguas neolatinas, haveria um elo comum que nos aproximaria, universalmente. Mas tudo isso deixa de ter presença e força, diante da marcha inexorável do progresso.

Você não pode conter a História, há quem ache que a História acabou. Não, a História não acabou. O que está acontecendo, segundo alguns, eu me incluo entre eles, é que se está construindo uma nova História e a História, hoje, está se fazendo num novo discurso, ela agora está se fazendo numa nova linguagem. Há um meta-discurso da História hoje, que vai construir outros espaços, talvez a gente não veja esses espaços, mas isso é um processo.

Fica muito difícil, Marco, ter uma visão do que acontece hoje. Pense assim: se você está diante do Pão-de-Açucar, ali embaixo, na base do Pão-de-Açúcar, olhando para cima você tem perspectiva? Não. Você precisa ficar um pouquinho distante, talvez na enseada de Botafogo, talvez um pouco mais distante, para que possa ter a idéia geral do Pão-de-Açúcar, no contexto da enseada. No contexto das línguas internacionais, é preciso distância para medir exatamente até que ponto o esperanto é o Pão-de-Açúcar ou é o Corcovado.

TARCÍSIO PADILHA – Alguma outra pergunta?

PLATÉIA – Boa-noite. Fiquei muito feliz quando o palestrante colocou a questão da literatura brasileira para a preservação da língua portuguesa. Infelizmente, a gente verifica que a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro retirou a disciplina Literatura do seu currículo. Por acaso, a Academia Brasileira de Letras tomou alguma posição?

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Pergunta para a Academia, o presidente responde.

TARCÍSIO PADILHA – A Academia Brasileira de Letras não interfere, diretamente, na elaboração de currículos e programas escolares. Evidentemente, seus pronunciamentos, seus estudos, são sinalizações da própria língua, no sentido de preservá-la, no sentido de registrar o seu enriquecimento. E a forma de preservar, como já foi aqui mencionada pelo ilustre conferencista, é, por exemplo, a edição de um Vocabulário Ortográfico, de um Dicionário, os livros das suas coleções, suas revistas e pronunciamentos, conferências como, por exemplo, aqui se realiza este Ciclo, que é um esforço de meditação em torno desta prioridade inquestionável, não só para esta casa, mas para o país, que é o debate em torno da língua portuguesa. São formas culturais de atuação e não formas burocráticas de interferir no curso educacional convencional.
Alguma outra pergunta?

PLATÉIA – Por gentileza, gostaria de saber do ilustre palestrante a sua opinião a respeito das declarações de um lingüista americano, se não me engano, americano, que, nas páginas da Veja, previu a extinção da língua portuguesa para daqui a duzentos anos?

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Fez um exercício de futurologia, não é? Olhe, num dos trechos aqui do que ia dizer, tinha incluído uma referência ao espanhol como língua de fronteira. Acho que, nesse sentido, como as duas estruturas, português e espanhol, são muito próximas, a contaminação pode se dar com mais evidência até do que com a presença do inglês. Mas acho muito difícil que isso aconteça, porque, na base da influência, está a condição cultural, percebe? Então, no jogo que preside a relação entre as várias culturas, diria até com um pouco de otimismo, enquanto elas estiverem em paralelo, fica muito difícil. E se uma se hegemoniza, é muito difícil que a outra língua se apresente como dominante.

Isso aconteceu no tempo do latim, por uma razão muito simples. O latim era uma língua muito melhor organizada, muito mais musical, tinha uma estruturação, tinha uma história, tinha uma história escrita, que a língua do dominado não tinha, a língua das províncias que foram conquistar. No caso, não há província a conquistar, a não ser economicamente etc. Não há oposições culturais marcantes e as duas línguas estão no mesmo estágio. Então, o que vai acontecer daqui a trezentos anos ou daqui a quinhentos anos, dificilmente, a gente pode prever. Mesmo um lingüista, com todo respeito à argumentação, eu li a argumentação dele, não encontrei fundamento efetivo, porque o que falta, em termos de língua, no Brasil e na Latino-América, é pesquisa. Nem sabemos direito que português nós falamos. Não existem estudos que digam qual é a língua padrão brasileira.

Por exemplo, qual é a pronúncia melhor do Brasil? Qual é a língua culta brasileira? Há um projeto em andamento, projeto da norma urbana culta, que há dezenas de anos está em desenvolvimento, mas não chegou à conclusão ainda. Até porque, numa realidade em que a dialetologia brasileira, tanto em termos horizontais, como em termos verticais, é dificílima de você fazer pesquisa. Então, não há um desenho do português, não há um desenho do espanhol. Como é que você pode prever o que vai acontecer? Acho difícil, mesmo para um lingüista.

TARCÍSIO PADILHA – Uma outra pessoa para haver maior participação. Alguém mais deseja? Por favor. A última pergunta.

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Um colega filólogo, Paulo, da Academia Brasileira de Filologia. Agora, a coisa vai pegar fogo; vai falar o filólogo, já estou tremendo aqui, conheço o orador.

PLATÉIA (Paulo) – Entretanto, já vai longe a hora, e conseqüentemente, gostaria apenas, em vez de fazer perguntas, de dizer o mínimo. Primeiro, como você bem sabe, sou um apaixonado da pureza da língua portuguesa, não do purismo, que é evidentemente a demasia, mas, muito próxima da demasia, está a pureza. E a pureza da língua, você bem disse, ela se divide em léxica, semântica, prosódica, fonética, e sobretudo, semântica e sintática. O que precisamos verificar é que é mister manter a pureza semântica e a pureza sintática. Há alguém aqui que já teve essa oportunidade de ler uma obra minha, longa, e que me ofereceu lindo prefácio. Vai sair. É Carlos Nejar. Na minha obra aqui na Academia, tive os dois prêmios: de Literatura e de Arte de Falar em Público. Pois bem, ele viu que uso a pureza, do início ao fim da obra. Portanto, na parte relativa ao léxico, francamente, o que está faltando é que os especialistas se incomodem, se valham da oportunidade para apresentar exatamente as palavras vernáculas. Por exemplo, lembro apenas uma de que você falou, também lembro de outras, mas você falou na galocha. Ora, nós tivemos a impermeável, essa expressão foi muito usada: vou comprar umas impermeáveis. Naturalmente, as pessoas comuns não sabiam o que eram impermeáveis, mas as pessoas, como nós outros, sabemos o que era impermeável.

Por conseguinte, temos a necessidade de tradutores. Quando eu estava fazendo a Universidade de Paris, lembro-me bem, na época de De Gaulle, que De Gaulle colocou uma determinação oficial contra o franglais, isto é, o francês/inglês, tal a invasão de anglicismos na língua francesa. Pois bem, aqui não precisaríamos dessa determinação tão grande, salvo da própria Academia Brasileira de Letras. Portanto, antes de tudo, vim não para dizer o que penso no total disso, mas para ver a sua figura, para ouvir a sua voz, e sobretudo, para ouvir-lhe a sabedoria. Felicidades.

DOMÍCIO PROENÇA FILHO – Obrigado, agradeço lisonjeado, inclusive, porque você se colocou numa posição discordante, e é muito bom que a gente discorde, porque é da discordância que nasce, naturalmente, uma iluminação maior. Mas só queria dizer uma palavrinha: língua é comunidade. Você falou que as pessoas comuns não usavam impermeável, é aí que pega, percebe, Paulo? É que as pessoas comuns é que fazem a língua. Não sou eu, não é você, não é a Academia. A Academia pode determinar o que ela quiser, o legislador pode determinar o que ele quiser. O que a Academia pode fazer, como disse muito bem o professor Padilha, é dar orientação, sugestões.

Nem a nomenclatura gramatical brasileira foi obrigatória. Foi sugerida. Nem a nomenclatura, que não é tão profunda. Língua é alguma coisa que emerge da própria comunidade, ela é feita por quem fala, ela é feita pelo povo. Não tem jeito. É aquilo que o Bandeira dizia, contrariando totalmente a sua argumentação: "Língua errada do povo, língua certa do povo, porque ele é que sabe falar a língua do Brasil".

Eu lhe respondo com Bandeira, e a gente continua essa discussão depois.

TARCÍSIO PADILHA Uma palavra de encerramento, em primeiro lugar, para sublinhar a riqueza da conferência, em que o conferencista teve, realmente, a sensibilidade de compreender que esta problemática que ele abordou deveria receber, naturalmente, um tratamento interdisciplinar. A matéria Cultural é extremamente complexa e ocorre que vivemos um grande desafio Cultural dos nossos dias, porque, quando se fala em Cultura, Cultura é um processo de maturação, um processo de sedimentação, e o tempo corre célere demais.

De modo que é uma espécie de contraste entre essa necessidade de maturação e o tempo de que não dispomos para propiciá-la. Então vivemos aí esse momento de contradição aparente, digo aparente, porque se trata de um processo, e um processo é uma transição, e não creiam que a transição é algo de excepcional. Costuma-se dizer: adolescência é um período de transição. Para mim, nada mais errado. A transição é a própria vida, todos os momentos da vida, todas as fases da vida configuram a transição. Estamos a mudar, tudo muda, nada permanece, dizia lá o velho Heráclito, para caracterizar exatamente essa dinâmica do ser. E se o ser é dinâmico por natureza, a língua através da qual os seres humanos se expressam não poderia fugir a esse dinamismo.

Então, a língua se constrói, a língua está sempre in fieri, é um eterno werden, é uma mudança perene, a sua situação é de um provisório, de um temporal que vai sempre se afeiçoando, se acomodando, se ajustando exatamente a uma conjuntura social, política, econômica, religiosa, ética, que vai sofrendo também transformações ao longo do tempo, de tal maneira, e aqui o conferencista teve a sabedoria de compreender esse processo, e por conseguinte, de não acreditar no império soberano de uma determinada língua, ainda que ela tenha uma grande presença, e muito menos, na possibilidade de um pensamento único.

A singularidade do ser humano reage a toda e qualquer tentativa de unificação do pensamento. O pensamento cada vez é mais complexo, o paradigma da simplicidade já era. Aquilo com que nos defrontamos, aquilo que está presente ante nossos olhos é exatamente esta visão que não é sistêmica, porque não encontramos um sistema para abarcar. É a visão destas interseções dos saberes que criam esses buracos negros do conhecimento, esses espaços indevassáveis em que, por maior que seja a lucidez, não podemos ultrapassar o cinzento das nuvens. A busca do azul celeste é uma aspiração, o encontro com a complexidade é o real, é aquilo com que, efetivamente, nos defrontamos, e este é o solo de que dispomos, sem absolutamente descrer desta possibilidade, conquanto remota de descerrar a cortina que poderá algum dia trazer-nos um pouco de luz a esse mundo tão conturbado.

Agradeço muito a presença dos senhores acadêmicos Afonso Arinos de Melo Franco Filho, Antônio Olinto, a senhora Zora Seljan, também Murilo Melo Filho, Ivan Junqueira, e o acadêmico, secretário-geral Carlos Nejar, sem falar no ilustre conferencista Domício Proença. Ah, o Marcos Almir Madeira está oculto por elipse ali, não está na primeira fila.

No dia 13 de junho, a próxima terça-feira, teremos a conferência da doutora Miriam Lemle sobre Variação Lingüística e a Metáfora do Computador.

Muito obrigado, está encerrada a sessão.
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Texto extraído do saite Por trás das letras, do prof. Hélio Consolaro, no endereço http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/globalizacaoeestrangeirismo .

 

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