Dica n.º 46 - Sexta, 08.06.2001
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Ciúmes e saudades

É de estranhar e mesmo tende-se a considerar incorreto o uso no plural de nomes como os acima, já que ambos expressam conceitos abstratos, sentimentos, que, como tais, são considerados "incontáveis". Como contar o ciúme e a saudade para pluralizá-los: dois ciúmes, três saudades? Lemos, nos comentários do mestre Napoleão Mendes de Almeida, que "Os substantivos que exprimem noções abstratas, vícios e virtudes empregam-se no singular: a prudência, a preguiça, a caridade, a ociosidade, a fortaleza" (ALMEIDA, 1981: 286). Mais adiante, porém, ele acrescenta:

"Tratando-se de virtudes, vícios, de certas disposições, sentimentos e paixões, muito é para notado que, em alguns casos, a mesma palavra, empregada no singular ou plural, não designa de todo o ponto a mesma noção, mas dois aspectos diferentes por ela indicados nos dois números, como tão ao claro no-lo dão a ver os modelos do bom falar: 'Deixando as armas e as armaduras, a liberdade e as liberdades da vida, se vestiu de um hábito religioso' (Vieira)".

Daí verifica-se que certos nomes abstratos, quando empregados no plural, adquirem sentido algo diferente. Assim, tem-se liberdade, há pouco citado, como vocábulo designativo de conceito bem amplo e geral. No plural, designaria as várias liberdades, isto é, direitos a que tem o indivíduo: liberdade de ir e vir, de pensamento, de expressão, de credo religioso, etc., mas também intimidades sensuais, como em "Ei, não te dei essas liberdades!". Da mesma forma, tome-se a palavra amor, conceito geral e abstrato. Contudo, no plural - amores -, já se tem sentido diferente, pessoas a quem se dedica amor: "Zequinha e seus dois amores". O ato de lembrar é lembrança: "Tenho vaga lembrança desse fato". No plural, além de recordações, também pode significar cumprimentos, recomendações: "Dê lembranças minhas a sua família".

Se o plural de substantivos desse tipo não acarretar mudança de sentido, é indiferente usá-los no singular ou no plural: o ciúme ou os ciúmes, muita saudade ou muitas saudades, apesar do que foi dito no primeiro parágrafo. E por que isso? Porque a tendência é para o plural mesmo. Recorremos novamente ao prof. Napoleão, que testemunha:

"É disso confirmação o fato de outras palavras, designativas de disposições e sentimentos de espírito, quando nenhuma diferença de sentido implica sua flexão numérica, serem a pouco e pouco substituídas pelo plural. Tal se deu com parabém, com pêsame, com felicitação, nomes que, dantes empregados no singular ('Vossa senhoria me dá o pêsame dos achados com que vivo, e juntamente o parabém da enfermidade com que hei de morrer' - Vieira), são hoje usados no plural. Saudade vai sofrendo idêntica adaptação; já não dizemos que um dia só o plural se venha usar, mas por ora nada há que opor ao emprego da flexão numérica". (Idem, ibidem)

E por que essa tendência ao plural de nomes abstratos, "não-contáveis", portanto? Possivelmente, porque na mente dos falantes o plural expresse as reiteradas situações em que o sentimento ou a emoção ocorrem: ciúmes e saudades - vários momentos de ciúme ou de saudade. Pode ser também que, com o plural, se reforcem aquelas idéias ou se lhes acentue a intensidade: muito ciúme ou saudade.

Já outros nomes concretos, porém, como chope, clipe e videoclipe (a propósito, os três, estrangeirismos aportuguesados), são usados no singular ou no plural conforme designem, respectivamente, uma ou mais unidades: um chope, dois chopes; um clipe, dois clipes, um videoclipe, dois videoclipes.

Para concluir, podemos admitir a pluralização de nomes abstratos designativos de sentimentos e emoções, com o cuidado de verificar se não mudam de sentido nessa condição. Há autores que discordam desse ponto de vista, como Luiz Antonio Sacconi. Entretanto, preferimos acompanhar o posicionamento do prof. Napoleão e assim não remar contra a correnteza.

Leia mais em:
Dicionário de questões vernáculas, de Napoleão Mendes de Almeida, verbete "Saudade, Saudades".
Não erre mais!, de Luiz Antonio Sacconi, p. 214.

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