Dica n.º 143 - Sexta, 29.09.2006
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Níveis hierárquicos da linguagem verbal

No estudo de uma língua natural – por exemplo, o português –, convém ter em mente a existência de níveis hierárquicos, que lhe possibilitam a descrição de forma científica. Isso é especialmente importante para o professor, mais do que para o aluno. Vamos explorar esse tema, tratado com bastante propriedade pelo saudoso semanticista A. J. Greimas, que tanto contribuiu para a Lingüística, especialmente para a Semântica.

Partamos da língua que será objeto de nosso estudo, doravante chamada “língua-objeto”. Como é o português que aqui nos interessa, nossos exemplos nele se situarão. A oração “Laurinha pegou o copo” encontra-se no nível da dita língua-objeto. Isso porque as unidades lexicais, isto é, os vocábulos que a constituem descrevem a realidade em que estamos inseridos, o universo extralingüístico, o que nos rodeia. Dessa forma, “Laurinha” refere-se a uma pessoa do sexo feminino, “pegou” expressa ação que ela praticou em determinado momento e “o copo” traduz aquilo que Laurinha pegou, o objeto dessa ação. Essas unidades localizam-se no nível primário, o nível lingüístico.

Vimos que no parágrafo anterior emitimos mensagens para explicar o sentido que os vocábulos constantes da oração exemplificada nela apresentam: o que é “Laurinha”, “pegou” e “o copo”. Dissemos que a palavra “Laurinha” representa uma pessoa do sexo feminino e que a palavra “pegou” expressa ação que ela praticou. Trata-se, dessa forma, de linguagem falando de linguagem ou, para sermos mais precisos, de metalinguagem. Mas essa metalinguagem é natural, emprega palavras da própria língua-objeto, como “ação” e “praticou”. Na descrição científica de uma língua natural, os especialistas – os gramáticos – utilizam outra linguagem, construída e o mais possível distante do vocabulário comum da língua-objeto. Estamos falando da metalinguagem científica. A metalinguagem situa-se em nível hierárquico superior, nível secundário, o nível metalingüístico.

No nível metalingüístico, as mensagens não se referem ao universo que nos rodeia (descrito pela língua-objeto), mas à própria língua-objeto. É, como já dissemos, a linguagem falando da linguagem. R. Jakobson percebeu isso muito bem ao elaborar seu modelo de comunicação e estabelecer as funções da linguagem, uma das quais é a função metalingüística. Ela centra-se na própria língua. (Leia também no Glossário Gramatical o verbete “Função da linguagem”.)

É por isso que os gramáticos utilizam termos – é exatamente disso de que se trata, de terminologia – estranhos, como interjeição, fonema e adjunto adnominal. Eles constituem linguagem técnica, específica e o ideal é que sejam unívocos, quer dizer, tenham somente um significado. Infelizmente, as coisas não se passam exatamente assim muitas vezes, a exemplo de sujeito e predicado, que em outros contextos têm sentidos distintos do gramatical. Na terminologia lingüística, morfema tem diferentes significados, conforme a escola de pensamento que o utiliza: “unidade do nível morfológico” (neste caso, equivale, grosso modo, a “palavra”), “segmento da palavra que se refere à realidade extralingüística ou intralingüística” (neste sentido, pode-se classificar como morfema lexical – menin- – ou gramatical – -o, -a) ou ainda “segmento da palavra que possui função estritamente gramatical (-o, -a, psico-, -inho)”. O termo morfema não apresenta, portanto, a univocidade que seria desejável.

Muito bem. Então, termos como interjeição, fonema e adjunto adnominal pertencem à linguagem utilizada na descrição da nossa língua-objeto (nível metalingüístico) e precisam de definição. Assim, podemos, em princípio, dizer que interjeição é “palavra que exprime emoções, estados d’alma, manifestações do nosso íntimo”; fonema é “som da língua” e adjunto adnominal é “termo acessório da oração que caracteriza ou determina o substantivo”. Estamos agora usando outra linguagem para falar, para explicar, traduzir a metalinguagem. Esta nova linguagem situa-se em nível hierárquico mais acima. Trata-se da meta-metalinguagem, que explica a metalinguagem.

Voltemos à oração “Laurinha pegou o copo”. A Gramática ensina que nela “Laurinha” é seu sujeito. Mas o que significa “sujeito”? Napoleão Mendes de Almeida afirma ser sujeito “a pessoa ou coisa sobre a qual se faz alguma declaração” (ALMEIDA, 1999, § 650). Celso Cunha diz que “o sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração” (CUNHA, 2000, p. 119). Já Domingos P. Cegalla informa que “sujeito é o ser do qual se diz alguma coisa” (CEGALLA, 2000, p. 297). Essas definições, que traduzem o sentido de termo metalingüístico, situam-se, portanto, no nível terciário, no nível meta-metalínguístico.

Mas o especialista não considera qualquer afirmação como “científica” se ela não for comprovadamente verificável e coerente. É preciso checar a validade das definições. Isso só pode ser feito em outra instância, isto é, em nível hierárquico superior, no nível epistemológico.

Acabamos de ver que tanto Celso Cunha como Cegalla declaram que o sujeito é um “ser”. É mesmo? No período “Saudade é sentimento gostoso e ao mesmo tempo faz doer”, consideremos a oração “Saudade é sentimento gostoso”. Sem dúvida, seu sujeito é “saudade”. Saudade é “ser”? O Aurélio consigna que “ser” é “o que existe ou supomos existir”, “aquilo que é real” ou “o que se põe como existente”. O Houaiss diz que “ser” é “aquilo que realmente existe” ou “aquilo que possui realidade”. Se a saudade é algo real ou que tem existência, ela pode ser considerada “ser”. Neste caso, aqueles gramáticos estão dizendo algo coerente, que pode ser considerado válido. Entretanto, teríamos ainda, para realizar procedimento completo, de verificar também a consistência das definições da palavra “ser” conforme registrada pelos lexicógrafos (dicionaristas) mencionados.

Lá atrás, afirmou-se que “fonema é som da língua”. Será? A teoria lingüística declara que o som é realidade física, extralingüística, algo concreto, que pode ser medido e registrado. O fonema é função, conceito abstrato. Portanto, quem define fonema como “som” não pode ser questionado?

Vimos assim que a discussão onde se questiona a validade das definições situa-se em nível quaternário, no nível epistemológico. Evidentemente, o aprendiz da norma culta da língua não necessita enveredar por esses meandros da Filosofia – filosofia da comunicação e da linguagem –, mas é bom o professor ter clareza sobre essas distinções para executar seu trabalho com segurança e proficiência, com “pé no chão”.

Por fim, é oportuno esclarecer que as proposições teóricas em que este texto se baseou, de autoria do eminente semanticista A. J. Greimas, focaram especificamente a formulação de descrição semântica verdadeiramente científica. Contudo, consideramos perfeitamente possível extrapolar seu arcabouço para outros níveis gramaticais.


Leia mais em:
Semântica estrutural, de A. J. Greimas, pp. 22-26.

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