Você sabia? n.º 89 - Sexta, 24.09.2004
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Você sabia... que, com relação ao latim, as línguas ibéricas são mais conservadoras do que as do restante da România?

Há teoria que afirma terem as línguas e dialetos da periferia lingüística tendência a ser mais conservadores do que o centro irradiador. Assim, o português brasileiro mantém formas hoje consideradas arcaicas em comparação com a língua de Lisboa, a exemplo do uso do gerúndio para designar ação em processo: port. bras. “Estou trabalhando”; port. lus. “Estou a trabalhar”. Esse emprego do gerúndio, completamente em desuso no falar lisboeta, está presente em Camões: “Cantando espalharei por toda parte...” (CAMÕES, Os lusíadas, I, 2:7).

Da mesma forma, as línguas de origem latina da península ibérica são mais conservadoras do que outras do mundo românico, como o francês. B. E. Vidos afirma que “de las lenguas iberorrománicas, el portugués y el español son más conservadores que el catalán, y el portugués lo es más que el español”. (Veja indicação bibliográfica no final do texto.) Vamo-nos ocupar especialmente do português e do espanhol e de um em comparação com o outro.

Ainda no tempo do latim, surgiu em Roma a inovação lingüística manducare, que originou o francês manger e o italiano mangiare. Por essa época, vigorava a forma comedere, mais antiga. Pois ela se manteve no latim ibérico e deu origem ao português e ao espanhol comer. Da mesma maneira, os vocábulos latinos cuius, percuntari y metiri somente se conservaram – com alterações fonéticas, é claro – nessas duas línguas e no sardo (idioma nativo da ilha italiana da Sardenha, no mar Tirreno) e originaram o port. cujo, perguntar, medir; esp. cuyo, preguntar, medir e o sardo cuju, preguntare, medire.

Frente ao espanhol, o português apresenta vários traços arcaicos, que o aproximam mais da língua-mãe, como a conservação das vogais latinas, o que nem sempre aconteceu no espanhol, que mudou o timbre da vogal ou a ditongou:

latim
acetu
dece
faba
filu
fumu
rota
sudore
português
azedo
dez
fava
fio
fumo
roda
suor
espanhol
acedo (O espanhol manteve /s/.)
diez
haba
hilo (Em compensação, o espanhol conservou /l/.)
humo
rueda
sudor (Apesar de menos conservador em relação ao
português, o espanhol manteve /d/.)

No campo morfológico, a manutenção do infinitivo flexionado, traço tão típico do português (mas também existente no sardo), é fator de conservadorismo frente ao espanhol. Do mesmo modo, a mesóclise, usual no português culto, foi abandonada por aquela língua, assim como pelo provençal e o catalão. Encontramos, por exemplo, a forma partir nos emos no “Cantar del mío Cid”, séc. XII (Cf. VIDOS, 1968: 362).

Outro traço arcaizante do português diante do espanhol é a resposta afirmativa a perguntas como “Você vai comigo?” e “Seu pai dará permissão?”: “Vou” e “Dará” ou “Vai dar”, em vez de “Sim”, ao passo que à mesma indagação o falante espanhol responderá naturalmente “Sí”. Isso é nítida herança latina, pois a resposta à pergunta “Dare mihi illud habes?” seria “Dare habeo”. A mesma pergunta em português erudito: “Dar-mo-ás?” e a resposta: “Darei”.

Os especialistas consideram o francês língua românica mais inovadora – e mais diferente – que as demais da mesma família, e o italiano, a mais conservadora depois do sardo. O italiano, aliás, é o ”filho mais parecido com o pai”.

Leia mais em:
Lingüística românica, de Rodolfo Ilari, pp. 171 e segs.
Manual de Lingüística românica, de B. E. Vidos, pp. 361-363.
Saite do prof. Paulo Hernandes, seção "Você sabia?", edição n.º 24.