Você sabia? n.º 70 - Sexta, 28.03.2003
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Você sabia... que o português arcaico apresenta várias características que demonstram sua proximidade com o latim e o distinguem do português moderno? São diferenças de caráter fonético, morfológico, sintático e semântico. Vejamos algumas delas:
o Diferenças fonéticas
  - O atual ditongo “ão” aparecia sob as formas -ão, -am e -om nos vocábulos originados de substantivos, verbos e advérbios latinos terminados em -anu, -ane, -one, -udine, -unt, -um, -on, -ant, -a(d)unt. (Para ver exemplos, clique aqui.)
  - Muitas palavras ainda apresentavam vogais em hiato, o qual posteriormente veio a desfazer-se mediante crase ou ditongação: maa > má, seer > ser, poboo > povo; area > areia, creo > creio, fea > feia, meo > meio.
  - Ainda existia nasalidade em fonemas devido à síncope de /m/ e /n/ de palavras latinas, traço que desapareceu por desnasalização ou transferiu-se para fonemas vizinhos no português moderno: bõa > boa (de “bona”), gallĩa > galinha (de “gallina”), lidaĩa > ladainha (de “litania”), lűa > lua (de “luna”), mĩa > minha (de “mea”), űa > uma (de “una”), vĩo > vinho (de “vinu”).
  - O sufixo -vel apresentava-se nas formas -bil ou -vil, ainda próximas do latim: amávil, de “amabile” (amável); terribil, de “terribile” (terrível). A alternância b/v, como vemos, remonta a tempos muito antigos e ainda persiste no português moderno, como em assobiar/assoviar, brabo/bravo.
o Diferenças morfológicas
  - Nomes terminados em -nte, -or e -es eram uniformes: o infante/a infante, meu senhor/mia senhor, home portugaese/muller    portugaese (português), rio espanhol/casa espanhol.
  - Havia flexões de número hoje inexistentes: alferez/alferezes (alferes), arraez/arraezes (arrais), ourivez/ourivezes (ourives).
  - Diversos nomes hoje masculinos eram femininos e vice-versa: cometa, fim, mapa, mar, planeta eram femininos; coragem, linguagem, tribo eram masculinos.
  - O particípio dos verbos da segunda conjugação terminava em -udo (atual -ido): conhoçudo, escondudo, perdudo, temudo.
  - Formas do particípio presente (hoje desaparecido como flexão verbal) terminadas em -nte passaram posteriormente a substantivos, adjetivos ou preposições: cadente (que cai), durante (que dura), fervente (que ferve), pedinte (que pede), temente (que teme).
  - Muitos vocábulos freqüentes na língua arcaica desapareceram: ande (daí), asinha (depressa), chus (mais), coita (aflição, pena; daí, “coitado”), palmeirim (peregrino), sages (prudente).
o Diferenças sintáticas
  - Era comum a dupla negativa pré-verbal: ninguém non sabia; nem nenhum princepe non foi tam poderoso.
  - Homem ou ome eram empregados como pronome indefinido: Quando homem he na igreia; Ome non poderia mostrar. (“quando se está na igreja”; “não se poderia mostrar”).
  - Cujo era empregado como interrogativo com significado de “de quem”: cuja he esta gloria?; cujo sempr’eu fui?.
  - Uso freqüente de pleonasmos: boas bondades, hoje em este dia, um sonho que sonhei.
  - Emprego do pronome pessoal reto como complemento verbal: E o senhor disse que enforcariam ell. (Portanto, nenhuma novidade nas construções coloquiais e populares atuais “Vi ele” e “Pegue ela”.)
  - Pronomes indefinidos podiam ser precedidos de artigo: A űa ouve nome dona Maria, a outra ouve nome dona...”.
  - Se ou si equivaliam a “assim” em orações optativas: Si Deus mi perdon.
  - Havia maior liberdade na colocação do pronome oblíquo: Mas farei-te hűa cousa.
  - Outras características sintáticas: períodos extensos, pontuação escassa, liberdade de colocação das palavras na frase, predomínio da ordem inversa, etc.
o Diferenças semânticas
  - Muitas palavras atuais apresentam sentido diferente do que tinham no português arcaico. Nesta situação, encontram-se formidável (hoje, “magnífico”; antes, “que infunde pavor”); nado (hoje, “ato de nadar”; antes, “nascido”); vela (hoje tem vários sentidos; antes, incluía o de “sentinela”).

O português arcaico abrange o período que se inicia com a produção do primeiro texto conhecido e termina com a adoção da disciplina gramatical. Portanto, do século XII ao XVI. É fase de incertezas e indecisões ortográficas e gramaticais, de muita liberdade lingüística. Quase se pode dizer que em tal época cada um escrevia como queria. Muitos textos arcaicos preservados estão reunidos em coleções denominadas “cancioneiros”, dos quais os mais importantes são os da Ajuda, da Vaticana e de Colocci-Brancuti. A maior parte dessas obras conserva-se na Torre do Tombo ou na Biblioteca de Lisboa.

Exemplo de texto em português arcaico:

“Deves saber que ha mester, pera o caualo seer mais asinha mansso, destar presso de dous ramaaes em no preséuell, em tal guíssa, que por sa braueza nom se possa tirar a hűa parte nem aa outra. E outro caualo ou outra besta este sempre a par dell por se afazer com ell, e por tal que mais seguramente se possa homem a ell chegar. E deuno a tanger com as mãos muj mansamente per cada lugar, e esffregarlhe com ellas a cabeça muj docemente, er tragerlhas muj mansamente per todo o corpo e estremadamente pellas pernas e pellas mãos, e alçemlhas muito ameude, e batamlhy em ellas, como quem o quer ferrar. E deues a saber que nom deuem fazer ao caualo, attaa que seia bem mansso, nem hűa coussa esquiua, nem que o muito agraue”.
[Livro de Alveitaria (1318), de Mestre Geraldo, existente na Biblioteca Nacional, Lisboa. Extraído de Leite de Vasconcellos, J., 1959, pp. 44-45.)

O texto trata de instruções para amansar cavalos, no qual se notam várias das alterações e características já mencionadas. Para ver outro texto arcaico, clique aqui.

Leia mais em:
Antologia arcaica, de Francisco da Silveira Bueno.
Do latim ao português, de Edwin B. Williams.
Gramática histórica, de Ismael de Lima Coutinho.
Gramática histórica, de Dolores Garcia Carvalho e Manoel Nascimento.
Textos arcaicos, de José Leite de Vasconcellos.
Você sabia? n.º 013, saite do prof. Paulo Hernandes.
Você sabia? n.º 022, no mesmo saite.
Você sabia? n.º 023, idem.
Você sabia? n.º 056, idem.