|
Você sabia... que o português arcaico apresenta
várias características que demonstram sua proximidade
com o latim e o distinguem do português moderno? São
diferenças de caráter fonético, morfológico,
sintático e semântico. Vejamos algumas delas: |
o |
Diferenças fonéticas |
|
- |
O atual ditongo “ão”
aparecia sob as formas -ão, -am e -om
nos vocábulos originados de substantivos, verbos e advérbios
latinos terminados em -anu, -ane, -one, -udine, -unt, -um,
-on, -ant, -a(d)unt. (Para ver exemplos, clique
aqui.) |
|
- |
Muitas palavras ainda apresentavam vogais em hiato, o qual
posteriormente veio a desfazer-se mediante crase ou ditongação:
maa > má, seer > ser, poboo > povo; area
> areia, creo > creio, fea > feia, meo > meio. |
|
- |
Ainda existia nasalidade em fonemas devido à síncope
de /m/ e /n/ de palavras latinas, traço que desapareceu
por desnasalização ou transferiu-se para fonemas
vizinhos no português moderno: bõa >
boa (de “bona”), gallĩa > galinha (de “gallina”),
lidaĩa > ladainha (de “litania”),
lűa > lua (de “luna”),
mĩa > minha (de “mea”),
űa > uma (de “una”),
vĩo > vinho (de “vinu”). |
|
- |
O sufixo -vel apresentava-se nas formas -bil
ou -vil, ainda próximas do latim: amávil,
de “amabile” (amável); terribil,
de “terribile” (terrível). A alternância
b/v, como vemos, remonta a tempos muito antigos e ainda
persiste no português moderno, como em assobiar/assoviar,
brabo/bravo. |
o |
Diferenças morfológicas |
|
- |
Nomes terminados em -nte, -or
e -es eram uniformes: o infante/a infante, meu
senhor/mia senhor, home portugaese/muller
portugaese (português), rio espanhol/casa espanhol. |
|
- |
Havia flexões de número hoje inexistentes: alferez/alferezes
(alferes), arraez/arraezes (arrais), ourivez/ourivezes
(ourives). |
|
- |
Diversos nomes hoje masculinos eram femininos e vice-versa:
cometa, fim, mapa, mar, planeta eram femininos; coragem,
linguagem, tribo eram masculinos. |
|
- |
O particípio dos verbos da segunda conjugação
terminava em -udo (atual -ido): conhoçudo,
escondudo, perdudo, temudo. |
|
- |
Formas do particípio presente (hoje desaparecido como
flexão verbal) terminadas em -nte passaram posteriormente
a substantivos, adjetivos ou preposições: cadente
(que cai), durante (que dura), fervente (que
ferve), pedinte (que pede), temente (que teme). |
|
- |
Muitos vocábulos freqüentes na língua arcaica
desapareceram: ande (daí), asinha (depressa),
chus (mais), coita (aflição,
pena; daí, “coitado”), palmeirim
(peregrino), sages (prudente). |
o |
Diferenças sintáticas |
|
- |
Era comum a dupla negativa pré-verbal:
ninguém non sabia; nem nenhum princepe non foi tam
poderoso. |
|
- |
Homem ou ome eram empregados como pronome
indefinido: Quando homem he na igreia; Ome non poderia mostrar.
(“quando se está na igreja”; “não
se poderia mostrar”). |
|
- |
Cujo era empregado como interrogativo com significado
de “de quem”: cuja he esta gloria?; cujo sempr’eu
fui?. |
|
- |
Uso freqüente de pleonasmos: boas bondades, hoje
em este dia, um sonho que sonhei. |
|
- |
Emprego do pronome pessoal reto como complemento verbal: E
o senhor disse que enforcariam ell. (Portanto, nenhuma
novidade nas construções coloquiais e populares
atuais “Vi ele” e “Pegue ela”.) |
|
- |
Pronomes indefinidos podiam ser precedidos de artigo: A
űa ouve nome dona Maria,
a outra ouve nome dona...”. |
|
- |
Se ou si equivaliam a “assim”
em orações optativas: Si Deus mi perdon. |
|
- |
Havia maior liberdade na colocação do pronome
oblíquo: Mas farei-te hűa cousa. |
|
- |
Outras características sintáticas: períodos
extensos, pontuação escassa, liberdade de colocação
das palavras na frase, predomínio da ordem inversa, etc.
|
o |
Diferenças semânticas |
|
- |
Muitas palavras atuais apresentam sentido diferente
do que tinham no português arcaico. Nesta situação,
encontram-se formidável (hoje, “magnífico”;
antes, “que infunde pavor”); nado (hoje,
“ato de nadar”; antes, “nascido”); vela
(hoje tem vários sentidos; antes, incluía o de
“sentinela”). |
O português arcaico abrange o período que se inicia
com a produção do primeiro texto conhecido e termina
com a adoção da disciplina gramatical. Portanto, do
século XII ao XVI. É fase de incertezas e indecisões
ortográficas e gramaticais, de muita liberdade lingüística.
Quase se pode dizer que em tal época cada um escrevia como
queria. Muitos textos arcaicos preservados estão reunidos
em coleções denominadas “cancioneiros”,
dos quais os mais importantes são os da Ajuda, da Vaticana
e de Colocci-Brancuti. A maior parte dessas obras conserva-se na
Torre do Tombo ou na Biblioteca de Lisboa.
Exemplo de texto em português arcaico:
“Deves saber que
ha mester, pera o caualo seer mais asinha mansso, destar presso
de dous ramaaes em no preséuell, em tal guíssa, que
por sa braueza nom se possa tirar a hűa parte nem aa outra. E outro caualo
ou outra besta este sempre a par dell por se afazer com ell, e por
tal que mais seguramente se possa homem a ell chegar. E deuẽno
a tanger com as mãos muj mansamente per cada lugar, e esffregarlhe
com ellas a cabeça muj docemente, er tragerlhas muj mansamente
per todo o corpo e estremadamente pellas pernas e pellas mãos,
e alçemlhas muito ameude, e batamlhy em ellas, como quem
o quer ferrar. E deues a saber que nom deuem fazer ao caualo, attaa
que seia bem mansso, nem hűa coussa esquiua, nem que o muito
agraue”.
[Livro de Alveitaria (1318), de Mestre Geraldo, existente
na Biblioteca Nacional, Lisboa. Extraído de Leite
de Vasconcellos, J., 1959, pp. 44-45.)
O texto trata de instruções para amansar cavalos,
no qual se notam várias das alterações e características
já mencionadas. Para ver outro texto arcaico, clique
aqui.
|
|