Você sabia? n.º 74 - Sexta, 27.06.2003
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Você sabia... que é tendência da língua portuguesa a eliminação do hiato? Isso não quer dizer que a língua tenha “vontade própria”, mas que os falantes lusófonos têm aversão ao hiato (em razão da lei do menor esforço) e procuram, ao longo do tempo, desfazê-lo de várias maneiras. O fenômeno já ocorria no latim popular lusitânico, como se observa em antiquus > anticus, cohortem > cortem, consilii > consili, quattuor > quattor, etc. Continuou no português arcaico até chegar à língua atual. Vejamos quais são os recursos normalmente utilizados para supressão do hiato:
crase – Foi em fins do século XIII que começou a crase – fusão de vogais iguais em hiato – em português. Se as duas vogais eram átonas, a crase ocorreu mais cedo do que se uma delas fosse tônica. Exemplos de eliminação do hiato por crase: caente > queente > quente, escaecer > esqueecer > esquecer, legere > leer > ler, magister > meestre > mestre, mola > moo > mó, nudu > nuu > nu, oraculu > oragoo > orago (arc.), palatiu > paaço > paço, palumba > poomba > pomba, portugales > portuguees > português, sagitta > seeta > seta, sedere > seer > ser, tenere > teer > ter, uidere > veer > ver.
A crase não poupou nem palavras indígenas incorporadas ao português brasileiro, como caapon > capão (trecho de mato), Caa+Açu (mata grande)> Caaçu > Caçu (cidade goiana), caatingueira > catingueira (tipo de arbusto). A persistência de caatinga possivelmente decorre da necessidade de diferenciação de catinga (mau cheiro).
Como é tendência da língua, a crase continua a ocorrer: cooperativa > *coperativa (/kopera’tiva/), coordenador > *cordenador (kordena’dor/), álcool > *alco (/’alko/). A grafia permanece conservadora, mas na pronúncia já de há muito ocorreu a crase.
absorção por consoante da mesma natureza – Se uma consoante precedia duas vogais átonas – na condição de todas serem fonemas orais –, em muitos casos, uma das vogais desapareceu: angelo > angeo > anjo, rigidu > rigeo > rijo.
ditongação – Outra forma de desfazer o hiato é a ditongação. Isto pode ocorrer mediante a intercalação de semivogal epentética entre a tônica e a átona final, como em arena > area > areia, cena > cea > ceia, credo> creo > creio, fœdu > feo > feio, frenu >
freo > freio, lego > leo > leio, mediu> meo > meio, plenu > cheo > cheio, tela > tea > teia.
Outras vezes, a ditongação operou-se pela simples transformação do hiato em ditongo por oclusão (passagem de vogal a semivogal), como em amatis > amaes > amais, aranea > aranya > aranha, cœlu > ceo > céu, ego > eo > eu, malu > mao > mau, muralia > muralya > muralha, padre > pae > pai, palea > palya > palha, palu > pao > pau, pinea > pinya > pinha, soles > soes > sóis, velu > veo > véu.
O fenômeno continua. Observe como os nomes Lea e Andrea são costumeiramente pronunciados: /’leya/ e /ã’dreya/. Repare também na pronúncia de “óleos”, onde a transformação foi /‘leos/ > /’lyos/ > /’los/. Assim, esta palavra tornou-se homônima de “olhos”.
palatalização – Consoante palatal interpôs-se entre vogais em hiato para o eliminar em razão de desnasalização da vogal anterior: gallina> gallĩa > galinha, litania> lidaĩa > ladainha, mea> mĩa > minha, vinu> vĩo > vinho. Remanescentes dessas formas arcaicas encontram-se na pronúncia popular em regiões brasileiras, como o Nordeste.

Em muitos casos, porém, o hiato latino resistiu e chegou até o português arcaico – onde desapareceu em razão das causas acima – ou conseguiu mesmo persistir até nossos dias. As razões são distintas, como se pode ver:
a) a consoante intervocálica manteve-se por mais tempo e favoreceu a continuidade do hiato, que se formou depois da queda daquele fonema, como em dolere > doer, molere > moer, palude > padule > paul, salire > sair;
b) influência externa, ação de fonema nasal ou as duas causas: regina > reĩa > rainha (por influência de rei e reino, não houve assimilação do /e/ ao /i/, o que teria produzido /ii/ e, muito provavelmente, crase); bona > bõa > boa (a ressonância nasal impediu a assimilação, o que favoreceu a permanência do hiato);
c) vogal tônica e átona em hiato – A átona dissimilou-se (passou de vogal média para alta) se era mais fechada que a tônica na série /a, e, e, i/ ou na série /a, , o, u/. Isso impediu a ocorrência ou persistência de vogais iguais e, conseqüentemente, a crase: fidele > *feel > fiel, genesta > geesta > giesta (tipo de arbusto), uenariu > veeiro > vieiro (veio mineral, filão), uenatu > veado > *viado (só na pronúncia, por ora), ueneria > veeira > vieira (abano ou tipo de concha).

Leia mais em:
Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha.
Do latim ao português, de Edwin B. Williams, § 99.
Gramática histórica, de Dolores G. Carvalho e Manoel Nascimento, pp. 37 e 56.
Gramática histórica, de Ismael de Lima Coutinho, § 155.
Saite do prof. Paulo Hernandes, páginas:
- Você sabia? n.º 31
- Você sabia? n.º 44
- Você sabia? n.º 58
- Você sabia? n.º 70